A solidariedade, um dos aspectos mais contestados do fundo de garantia, foi alvo de fortes críticas na Assembleia da República. Um passo em frente para encontrar uma solução de equilíbrio entre os interesses dos consumidores e os encargos suportáveis pelas empresas.
1) Introdução
O novo quadro legal das agências de viagens aprovado em Maio último alargou significativamente o âmbito das garantias dos consumidores – praticamente todas as vendas das agências são abrangidas e não apenas os pacotes turísticos. A responsabilidade individual garantida pela banca ou companhia de seguros até um limite máximo é substituída por uma responsabilidade colectiva ilimitada em que as empresas concorrentes são chamadas a indemnizar os consumidores com quem não contrataram, inclusivamente daqueles que arriscaram adquirir viagens em condições de menor sensatez.
É nesta última característica da solidariedade do fundo de garantia consagrado pela nova lei das agências de viagens e turismo (LAVT) que reside um dos aspectos mais controvertidos.
2) A intervenção da Assembleia da República
A apreciação parlamentar (mecanismo através do qual a Assembleia da República pode alterar um decreto-lei aprovado pelo Governo) foi despoletada pelo PCP e discutida em plenário na passada sexta-feira, 2 de Dezembro.
O deputado do PCP, João Ramos, salientou a desequilibrada repartição de custos para a criação do fundo de garantia entre as empresas mais pequenas e as maiores – propôs a subida da contribuição relativamente aos operadores turísticos de 10.000 para 60.000 € e uma contribuição inicial de 25.000 € –, os perigos da possibilidade de atribuição da sua gestão a uma sociedade financeira, que as empresas estrangeiras suportem os mesmos encargos que as nacionais e que as verbas anteriormente pagas ao Turismo de Portugal, IP possam ser transformadas em depósito inicial.
Merecedora de amplo destaque na imprensa do sector foi a intervenção de Mendes Bota (PSD) apontando a concorrência desleal que o Estado, designadamente as Entidades Regionais e o próprio Turismo de Portugal, faz às empresas privadas através de portais web.
No que classificou de inaudito e famigerado fundo de garantia, reside a principal crítica do PSD detectando cinco falhas:
1) Paga o justo pelo pecador (penaliza quem cumpre, iliba quem faz uma má gestão e estimula as falcatruas);
2) Iniquidade: favorece as grandes empresas do sector em desfavor das PME’s;
3) Falta a categoria de incoming;
4) Discriminação relativamente às empresas nacionais favorecendo as estrangeiras;
5) O Estado apropria-se de rendimentos das empresas privadas e gere o fundo como entende (o sistema anterior pecava sobretudo pela fiscalização).
Apresentou um projecto de resolução conjuntamente com o PP recomendando ao Governo a constituição de um grupo de trabalho que no prazo de 60 dias identifique os ajustamentos necessários.
Terminou classificando o fundo e sobretudo a solidariedade que o caracteriza como discriminatório, gerador de iniquidade, colectivista e lesivo de uma concorrência leal e saudável.
O CDS-PP interveio através de Hélder Amaral que reconheceu estarem os casos Marsans e Mundiclasse na origem desta lei, sendo para si evidente a falta de regulação, de fiscalização e de sinais de alerta pois a Marsans tinha um processo de falência no seu país e nenhum dos institutos públicos nem o Governo foi capaz de salvaguardar o interesse dos consumidores.
Com bastante interesse surge a posição da Secretária de Estado do Turismo, Cecília Meireles, referindo que o sector das agências de viagens é provavelmente no turismo o que mais desafios enfrenta, existindo críticas com as quais concorda, outras que discorda e outras em que vai bastante mais longe.
Os aspectos relativamente ao cumprimento da Directiva Bolkestein parecem-lhe bem (procedimentos mais céleres e desmaterialização).
Quanto ao famigerado fundo de garantia importa acautelar os interesses dos consumidores, mas a forma como foi criado levanta outros problemas.
Reconhece a SET que há um problema de liquidez especialmente importante nesta conjuntura para empresas mais pequenas e que não há diferenciação em razão do volume de negócios pelo que o esforço pedido às PME’s é relativamente mais intenso do que aquele que é exigido às empresas de maior dimensão.
Destacou um problema muito grave no que toca à solidariedade do fundo, pois quando este baixar a um milhão de euros as empresas cumpridoras vão ser chamadas a contribuir novamente. Isto pode ser uma distorção muito grave, do seu ponto de vista.
Como são questões que têm de ser rapidamente corrigidas, o Governo já está a trabalhar com algumas associações, designadamente com a APAVT, e conta até 31 de Janeiro apresentar um conjunto de soluções para o problema.
3) Os próximos passos
A Directiva n.º 90/314/CEE que disciplina as viagens organizadas comummente designadas por pacotes turísticos apenas impõe que estejam assegurados, em caso de insolvência do operador e/ou agência, partes no contrato de viagem, meios de garantia suficientes em ordem ao reembolso dos fundos depositados e repatriamento do consumidor (aspecto assegurado, entre nós, pelo seguro de responsabilidade civil).
Já tenho visto defender que a caução é má solução porquanto as seguradoras ou os bancos vão exigir prémios desproporcionados em consequência do aumento do risco. Tenho acompanhado com atenção algumas dezenas de situações de agências de viagens de pequena e média dimensão já existentes à data de entrada em vigor da nova lei, que na expectativa de resolução deste problema optaram por renovar a caução, como é transitoriamente permitido.
Ora, nesses casos, o preço da caução manteve-se em regra dentro dos valores pagos ao longo dos últimos anos.
O que certamente conduzirá a uma apreciação negativa por parte das seguradoras ou da banca é as empresas saudáveis terem a todo o tempo a possibilidade de serem chamadas a responder pelos erros ou fraudes de concorrentes debilitados ou fraudulentos. Isso, sim, é um aspecto preocupante e que tem de ser corrigido.
Parece, pois, mais prudente que se aguarde pelos trabalhos de revisão da Directiva n.º 90/314/CEE mantendo-se até lá o sistema de caução há muito vigente. Afinal, como reconheceu o deputado Hélder Amaral, o caso Marsans que está na origem desta desproporcionada reacção legislativa do fundo de garantia solidário, foi sobretudo a falta de fiscalização por parte do Estado.
Devem ser entidades especializadas, bancos ou seguradoras, a estabelecerem um preço para assumirem a responsabilidade até determinada quantia. Por seu turno, o consumidor quando adquire a viagem sabe qual o montante garantido através de um registo público, o RNAVT. A opção do consumidor assenta em dados objectivos. Conhece, ou pelo menos tem a possibilidade de conhecer, a garantia financeira da agência que lhe vende a viagem e também a do respectivo operador turístico.
In Publituris n.º 1195, de 9 de Dezembro de 2011, pág. 4