Em 1970, a propósito da Serra da Estrela, o então Deputado Francisco Sá Carneiro expressava a “ideia central do desenvolvimento turístico integrado no desenvolvimento nacional, de valorização regional através de actividade turística com a adequada coordenação no desenvolvimento económico e social”.
No próximo Domingo 19 de Julho, não fora a tragédia de Camarate, Francisco Sá Carneiro poderia completar 75 anos, o que nos dá uma ideia da forma precoce como em 1980 terminou a sua vida, com apenas 46 anos.
Não cabe neste espaço uma evocação global da figura de homem e do estadista que com Álvaro Cunhal, Mário Soares e Freitas do Amaral integra o núcleo de dirigentes partidários fundadores do nosso regime democrático, mas apenas um breve enquadramento para a temática específica que me proponho desenvolver.
Na primavera marcelista a sua actividade política desponta com um fulgor ímpar, quando, em Maio de 1969, num característico rasgo solitário, escreve ao Presidente do Conselho Marcello Caetano sobre a imperiosa necessidade do regresso do Bispo do Porto, que se concretiza, conferindo-lhe uma inusitada projecção que extravasa largamente os influentes meios católicos.
Em Setembro de 1969 acede ao apelo de Melo e Castro de que é possível mudar o regime por dentro, tendo como objectivo instaurar uma democracia do tipo ocidental. Com grande frontalidade deixa claro num comunicado conjunto com outros candidatos do Porto – a mediatização do escrito retardado pela censura constitui o primeiro engulho do regime – que a sua intervenção se orientará “essencialmente no sentido da rápida e efectiva transformação política, social e económica do País. Consideram essencial para a realização de tal transformação assegurar o exercício efectivo dos direitos e liberdades fundamentais consignados na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos do Homem”.
Uma vez eleito – é no Tivoli Jardim que fica alojado nas suas deslocações semanais a Lisboa, entre terça e sexta feira – revela-se um deputado muito activo e logo em 11 de Dezembro de 1969 profere a sua primeira intervenção centrando-se na temática dos Direitos Humanos.
A segunda, em 29 de Janeiro de 1970, respeita a uma proposta de lei sobre a adopção de medidas tendentes ao desenvolvimento da região de turismo da Serra da Estrela. Francisco Sá Carneiro conjuntamente com outros deputados não se cingem à proposta do Governo alterando-a profundamente, como flui do registo dos trabalhos parlamentares:
O Sr. Sá Carneiro: - Sr. Presidente: Com esta minha intervenção pretendo esclarecer sobretudo as razões que levaram à apresentação de uma proposta de alteração total do articulado, quer do proposto pelo Governo, quer do sugerido pela Câmara Corporativa. Começarei por notar que essa proposta de alteração é fruto de um trabalho conjunto realizado no seio da Comissão de Política e Administração Geral e Local, com participação activa de todos, e onde houve eficácia dinamizante de uma orientação larga, liberal, mas profundamente ordenada. Saliento este facto por duas razões: em primeiro lugar, porque não é habitual este procedimento, segundo creio; em segundo lugar, porque o mesmo se me afigura, extremamente frutuoso e pessoalmente estou convencido de que esta Câmara pode usar plenamente da sua iniciativa legislativa, trabalhando em comissões de trabalho, não apenas para apreciação de projectos já apresentados, mas até para elaboração de projectos a apresentar. Creio que de futuro isto se revelará frutuoso, mas de momento fica aberto o precedente.
E mais à frente:
O parecer [da Câmara Corporativa], que, realmente, é de grande valia, não teve repercussão no articulado e a Câmara mantém, com ligeiras alterações de pormenor, aquilo que o Governo havia articulado. Perante este estado de coisas, a intenção dos proponentes desta proposta de alteração foi precisamente harmonizar, com as grandes linhas fundamentais do projecto, aquilo que na realidade tinha interesse, as duas notas dominantes da Câmara Corporativa, de maneira a tirar à proposta de lei aquele carácter particular que podia levá-la a ser designada por "lei do teleférico", conferindo-lhe a dignidade indispensável.
Isso se procurou fazer alterando o articulado e subordinando-o à ideia central do desenvolvimento turístico integrado no desenvolvimento nacional, de valorização regional através de actividade turística com a adequada coordenação no desenvolvimento económico e social.
Estas foram, portanto, as intenções do grupo de Deputados proponentes que procuraram, em vez de se opor frontalmente àquilo que parecia não ser de valor tal que justificasse a sua presença aqui, harmonizar o articulado com as intenções.
Desta incursão de Francisco Sá Carneiro resulta, para além de uma correcta formulação do pensamento em matéria de turismo, uma sólida vontade de mudança do status quo político, ou seja, a Assembleia Nacional sairia da dócil postura de mera aprovação das soluções governamentais para um activo papel na busca das soluções legislativas mais adequadas ao interesse público.
Em Julho de 1970 ocorreria a morte, na Guiné, do amigo e colega de curso José Pedro Pinto Leite e de outros deputados – o acidente de helicóptero nunca foi investigado no pós 25 Abril – catapultando Francisco Sá Carneiro para a liderança da denominada Ala Liberal.
Em Abril de 1971 o seu espaço ideológico fica claramente demarcado numa entrevista ao então jovem jornalista do República, Jaime Gama, asseverando que no quadro das democracias ocidentais se integraria num partido social-democrata.
Face ao sistemático chumbo das suas propostas renuncia ao mandato de deputado em Janeiro de 1973.
A participação na SEDES e o visto no Expresso complementam a sua intervenção crítica ao quadragenário regime político que, ao invés de Espanha, não consegue evoluir pelo seu próprio pé para a Democracia, a qual só é alcançada pela ruptura decorrente da madrugada libertadora de Abril.
Francisco Sá Carneiro foi um homem cuja intensa e meteórica actividade política entre 1969 e 1974 lhe permitiu criar um amplo espaço político próprio que aproveitou para o lançamento de um partido político logo em 6 de Maio de 1974 – dez dias depois tomou posse como destacado ministro adjunto de Adelino da Palma Carlos, ou seja o nº 2 do Governo, trabalhando lado a lado e de portas abertas com o 1º Ministro – separando-se em Portugal, algo artificialmente, a social democracia e o socialismo democrático. Com efeito, Francisco Sá Carneiro e Mário Soares revelaram-se duas personalidades demasiado fortes para o mesmo espaço ideológico, conduzindo, assim, à forte implantação de dois partidos que se têm alternado no poder nesta III República.
Na feliz expressão de Almeida Santos, Francisco Sá Carneiro foi um Deputado a sério num Parlamento a fingir. Nos 75 anos do seu nascimento, fica o registo deste seu menos conhecido contributo em matéria de turismo consubstanciando uma activa e inovadora forma de intervenção política como era seu timbre.
In Publituris nº 1080, 17 de Julho de 2009, pág. 6