segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Transposição da Directiva Bolkestein pelo Decreto-Lei n.º 92/2010, de 26 de Julho (1ª parte)

SUMÁRIO:
  1. Para além das agências de viagens, a Directiva Bolkestein, agora transposta pelo Decreto-Lei n.º 92/2010, de 26 de Julho, abrange outras actividades de relevo para o turismo como o rent-a-car, a animação turística/operadores marítimo-turísticos e os estabelecimentos de restauração e bebidas.
  2. Os estabelecimentos que não tenham fins de prevenção da doença, terapêutica, reabilitação e manutenção da saúde, os quais se dedicam exclusivamente a finalidades estéticas, à beleza e ao relaxamento são excluídos da disciplina da actividade termal passando a ser considerados equipamentos de animação turística.
1) Introdução

O Decreto-Lei n.º 92/2010, de 26 de Julho, vem estabelecer os princípios e as regras necessárias para simplificar o livre acesso e exercício das actividades de serviços e transpõe a Directiva n.º 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro, vulgarmente conhecida por Directiva Bolkestein ou Directiva dos Serviços.

Embora uma boa parte do preambulo procure enquadrar o diploma legal no Programa do Governo, o sumário e o articulado revelam claramente o propósito dominante, ou seja, a transposição da Directiva Bolkestein (art.º 1.º/2).

O diploma tem como objectivo fundamental a fixação dos princípios e das regras necessárias para simplificar, no território nacional, o livre acesso e exercício à actividade de serviços (art.º 1.º/1) excluindo-se do seu âmbito as que sejam desenvolvidas com gratuitidade ou seja, apenas relevam as que tenham contrapartida económica (art.º 3.º/1).

2) Âmbito objectivo e subjectivo

A quem se aplicam estas normas (âmbito subjectivo) e a que situações (âmbito objectivo), são matérias reguladas respectivamente nos artigos 2.º e 3.º.

O âmbito subjectivo: prestadores de serviços estabelecidos em Portugal ou noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu sejam pessoas singulares ou colectivas.

No âmbito objectivo as actividades de serviços desenvolvidas com carácter remunerado e que sejam oferecidas ou desenvolvidas em Portugal. Com carácter exemplificativo – ou seja, o legislador limita-se a enumerar alguns exemplos mas existem outros – surge-nos no final do diploma um anexo com uma listagem de actividades. Algumas delas respeitam ao turismo, a saber:
  • Agências de viagens de turismo;
  • Aluguer de veículos automóveis sem condutor (rent-a-car);
  • Animação turística e de operadores marítimo-turísticos;
  • Operações turísticas de observação de cetáceos;
  • Restaurantes e bares (estabelecimentos de restauração ou de bebidas);
Por serviço entende-se qualquer actividade económica não assalariada – isto é, sem a natureza de contrato de trabalho subordinado, o qual é desenvolvido sob autoridade e direcção de outrem – prestada normalmente mediante remuneração, remetendo-se expressamente para o art.º 57.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) (art.º 3.º/2).

Existem, porém, serviços aos quais não é aplicável o diploma, que se encontram excluídos do seu âmbito de aplicação (art.º 3.º/3):
  1. Os serviços financeiros;
  2. Os serviços e as redes de comunicações electrónicas;
  3. Os serviços no domínio dos transportes e de navegação marítima e aérea, incluindo os serviços portuários e aeroportuários, na condição de estarem abrangidos pelo âmbito do título VI do TFUE;
  4. Os serviços de empresas ou agências de trabalho temporário;
  5. Os serviços de cuidados de saúde;
  6. As actividades cinematográficas, de rádio e audiovisuais,
  7. As actividades de jogo a dinheiro;
  8. Os serviços sociais no sector da habitação, da assistência à infância e serviços dispensados às famílias necessitadas;
  9. Os serviços de segurança privada;
  10. Os serviços prestados por qualquer entidade no exercício de autoridade pública de harmonia com o art.º 51.º do TFUE;
  11. Os serviços prestados por notários.
3) O livre acesso e exercício das actividades de serviços

O princípio fundamental fixado no art.º 49.º do Tratado de Roma no qual se determina que as restrições à livre prestação de serviços na Comunidade serão proibidas relativamente aos nacionais dos Estados membros estabelecidos num Estado da Comunidade que não seja o do destinatário da prestação surge-nos agora no art.º 4.º, que consagra igualmente a liberdade de estabelecimento.

De harmonia com estes dois estruturantes princípios os prestadores de serviços – quer as pessoas singulares ou colectivas nacionais quer as sedeadas noutro Estado membro - podem livremente estabelecer-se e exercer a sua actividade em território português, designadamente através da criação de sociedades, sucursais, filiais, agências ou escritórios fazendo-o em regra sem necessidade de qualquer permissão administrativa ou até de uma mera comunicação prévia. No entanto apesar da regra ser a desnecessidade de permissão administrativa ou comunicação prévia consagram-se algumas excepções no capítulo III (artigos 8.º a 18.º) as quais se traduzem um duplo condicionalismo: situações em que lei preveja tal permissão administrativa e a mesma possa ser estabelecida (art.º 4.º/1).

O conceito de estabelecimento é fixado no n.º 2 do art.º 4.º: o exercício efectivo pelo prestador de uma actividade económica não assalariada de harmonia com o art.º 49.º do TFUE ou a constituição e gestão de empresas – sobretudo sociedades comerciais – por tempo indeterminado utilizando uma infra-estrutura estável a partir da qual a prestação de serviços é efectivamente assegurada.

Para assegurar as liberdades fundamentais de estabelecimento e prestação de serviços impõe-se a simplificação administrativa, matéria que figura no capítulo II (artigos 5.º a 7.º).

4) Simplificação administrativa. O balcão único dos serviços

O art.º 5º impõe a regra da redução ao mínimo indispensável dos encargos sobre os prestadores de serviços dos procedimentos administrativos que o diploma contemple bem como de documentos ou actos que tenham de praticar ou enviar às autoridades. Assim, todos os pedidos, comunicações e notificações entre os prestadores de serviços e as autoridades administrativas impõe-se que sejam realizadas através do balcão único electrónico.

A criação do balcão único dos serviços (art.º 6.º) associada à desmaterialização de procedimentos constitui uma das medidas mais emblemáticas visando a simplificação e a desburocratização facilitando a vida às pessoas e às empresas prestadoras de serviços. Permite a qualquer prestador ou destinatário de serviços de todos os Estados o acesso por via electrónica às competentes autoridades administrativas. Deste modo, todos os pedidos, comunicações e notificações entre os prestadores de serviços e outros intervenientes nos procedimentos, neste se incluindo as autoridades, devem poder ser efectuados por meios electrónicos e de forma centralizada.

Um vasto acervo informativo é disponibilizado aos prestadores e aos destinatários de serviços de todos os Estados informação, em pelo menos três línguas (português, inglês e castelhano) de forma clara, inequívoca e actualizada, a saber:
  1. Os requisitos aplicáveis à prestação de serviços;
  2. Os endereços e os contactos das competentes autoridades administrativas;
  3. Os meios e as condições de acesso às bases de dados públicas v.g. registos e notariado;
  4. Os meios de reacção judiciais ou extrajudiciais de resolução de litígios entre prestadores de serviços, entre as autoridades administrativas e os prestadores de serviços ou entre um prestador e o destinatário do serviço;
  5. Os endereços e os contactos de quaisquer entidades que prestem assistência a prestadores ou a destinatários;
  6. Lista exemplificativa dos documentos que as autoridades administrativas competentes aceitam em substituição dos documentos legalmente exigidos;
  7. Lista dos documentos que devem ser apresentados sob a forma original, autêntica, autenticada, cópia ou tradução certificadas ou com reconhecimento de letra e assinatura, ou só de assinatura, fundamentada em imperiosa razão de interesse público;
Procura-se, por outro lado, facilitar a prova por documental relativa a um requisito para o acesso ou exercício da actividade através da aceitação de documentos que tenham uma finalidade equivalente ou que demonstrem a verificação do facto, independentemente de terem sido emitidos em Portugal ou noutro Estado membro (art.º 7.º). Neste último caso, em regra não pode ser exigida a apresentação sob a forma original, autêntica, autenticada ou cópia ou tradução certificadas. Existem, no entanto, algumas excepções como o reconhecimento das qualificações profissionais.

5) Situações em que se mantêm as licenças, autorizações, validações e outras permissões administrativas no acesso ou exercício da actividade de serviços

O capítulo III (artigos 8.º a 18.º) disciplina a matéria das permissões administrativas para acesso ou exercício das actividades de serviços – licenças, autorizações, validações, autenticações, certificações, actos emitidos na sequência

de comunicações prévias com prazo e registos – ou seja, situações em que uma actividade de serviços não pode ser prestada livremente ou através de uma mera comunicação prévia.

Estas situações que escapam à regra da liberdade de estabelecimento e livre prestação de serviços ficam, no entanto, sujeitas de harmonia com o n.º 3 do art.º 8.º a um exigente conjunto de princípios:
  1. Princípio da legalidade;
  2. Princípio da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos;
  3. Princípio da igualdade;
  4. Princípio da proporcionalidade neste se incluindo os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade stricto sensu;
  5. Princípio da justiça;
  6. Princípio da imparcialidade, incluindo a objectividade;
  7. Princípio da boa-fé;
  8. Princípio da colaboração da administração com os particulares, incluindo a publicidade;
  9. Princípio da participação, incluindo a transparência;
  10. Princípio da decisão;
  11. Princípio da desburocratização e da eficiência, incluindo a simplicidade, celeridade e decisão final no mais curto prazo possível, clareza e transparência;
  12. Princípio da gratuitidade, excepcionando-se os casos em que, atento o princípio da proporcionalidade, por lei, o prestador de serviços possa ser sujeito à cobrança de uma taxa pelo custo do procedimento;
  13. Princípio do acesso à justiça.
Do art.º 9.º resulta, por outro lado, um apertado condicionalismo para o estabelecimento de uma permissão administrativa: 1.º) Que o objectivo não possa ser alcançado através de um meio administrativo menos restritivo; 2.º) Que as suas formalidades se encontrem clara e inequivocamente previstas na lei; 3.º) Absoluta indispensabilidade da permissão administrativa; 4.º) Justificação, de forma proporcional, por uma imperiosa razão de interesse público de harmonia com o n.º 1 do artigo 30.º.

Outro princípio importante é o da igualdade e não discriminação de prestadores de serviços, não podendo em conformidade estabelecer-se requisitos ou condições discriminatórias baseadas na nacionalidade, local de residência ou sede (art.º 10.º).

6) Exclusão de alguns estabelecimentos da actividade termal

No Capítulo VII alteram-se normas de alguns regimes sectoriais. Em primeiro lugar os estabelecimentos que não tenham fins de prevenção da doença, terapêutica, reabilitação e manutenção da saúde, os quais se dedicam exclusivamente a finalidades estéticas, à beleza e ao relaxamento. Opera-se a exclusão da disciplina da actividade termal (Decreto-Lei n.º 142/2004, de 11 de Junho) passando a ser considerados equipamentos de animação turística sendo-lhes aplicável o regime previsto no Decreto-Lei n.º 108/2009, de 15 de Maio.

Seguem-se o regulamento da actividade de observação de cetáceos nas águas de Portugal continental, regime jurídico da qualidade da água para consumo humano, regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, regime jurídico dos serviços de âmbito multimunicipal de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos e, por fim, o regime legal da incineração e co-incineração de resíduos.

In Turisver on-line, 2 de Agosto de 2010

terça-feira, 20 de julho de 2010

Jurista Carlos Torres dá «Sugestão para o Fundo de Garantia»

Na passada sexta-feira, o presidente do Turismo de Portugal foi ouvido na Comissão Parlamentar dos Assuntos Económicos sobre o Caso Marsans, designadamente sobre a questão caução da agência. Na audição Luís Patrão admitiu que a actual legislação pode vir a ser revista no que toca à gestão das cauções e avançou que uma alternativa possível é a criação de um fundo de garantia, gerido por instituições financeiras ou seguradoras. Ao Turisver.com o jurista Carlos Torres, especialista na área do turismo, avança com sugestões para este fundo, em artigo que transcrevemos na íntegra.

“O fundo de garantia que o presidente do Turismo de Portugal vê com simpatia pode ser constituído com uma parte das taxas manifestamente desproporcionadas - cerca 12 500 € - que durante anos foram cobradas pelo organismo a que preside.
A aparente simpatia com que o Dr. Luís Patrão vê um fundo de garantia em substituição do actual sistema de cauções individuais, como parece decorrer da sua audição na Assembleia da República na passada sexta-feira, pode ser constituído com uma parte das taxas que o Turismo de Portugal vem cobrando pela constituição de agências de viagens e sucursais de operadores europeus ao abrigo da Portaria n.º 784/93, de 6 de Setembro.
Com efeito, na taxa, diferentemente do imposto, existe um nexo de reciprocidade, constituindo o pagamento de um serviço prestado pelo Estado tratando-se, por essa circunstância, de uma remuneração manifestamente desproporcionada dado o baixo custo administrativo da verificação formal dos requisitos de que depende a emissão de um alvará para o exercício da actividade das agências de viagens e turismo. A desproporção da verba auferida pelo Turismo de Portugal é acentuada pelo incumprimento da obrigação que impende sobre a autoridade turística nacional, desde 2007, da disponibilização no seu sítio da internet do registo das agências de viagens licenciadas.
A ponderação desta questão do custo desproporcionado, na primitiva versão da lei das agências de viagens terá levado, em 1997, à previsão de que uma parte da taxa fosse aplicada em instituições de apoio ao agente de viagens, intenção legislativa que inexplicavelmente nunca foi levada à prática.
Eis uma boa ocasião para o Estado devolver ao sector das agências de viagens uma verba muito significativa que ilegitimamente lhe cobrou. A quantificação é muito simples bastando verificar o número de alvarás que foram emitidos quer de agências de viagens nacionais quer de sucursais europeias."

Turisver on-line  de 19 de Julho 2010

segunda-feira, 19 de julho de 2010

ALLways Portugal...


O quadro de grande dificuldade das contas públicas e a circunstância das despesas dos turistas portugueses no estrangeiro representarem cerca de 2% do PIB tornam mais premente a necessidade de deslocar uma parte desses fluxos para o turismo interno.


Do ponto de vista dos governos nacionais, os fluxos de turistas para fora das suas fronteiras aumenta o consumo de bens e serviços estrangeiros. Constitui, assim, um entendimento pacífico que as importações do turismo, os recursos dispendidos por residentes nacionais no estrangeiro, afectam negativamente a balança de pagamentos (McIntosh/Goeldner, Tourism: Planning, Practices, Philosophies, 1984, pp. 405-6).

No entanto, como referem Mathieson/Wall (Tourism: Economic, Physical and Social Impacts, 1982, p. 57), no campo das políticas públicas e do planeamento do turismo, a atenção tem-se centrado fundamentalmente na avaliação do “grau em que o país atrai visitantes [estrangeiros] em detrimento da sua capacidade para persuadir os residentes a não viajarem para o estrangeiro”. Também os estudos dos impactos sociais e ambientais do turismo bem como dos condicionamentos aos fluxos turísticos têm sido realizados fundamentalmente na perspectiva do incoming.

As poucas abordagens relacionadas com as políticas governamentais que afectam os turistas nacionais que se deslocam ao estrangeiro centram-se na imposição de restrições, designadamente nas exigências de visto de saída, nas licenças restritivas para os serviços de viagens ao estrangeiro, nos limites ao acesso à moeda estrangeira e nos bens isentos de direitos de importação que podem trazer consigo (Edgell, International Tourism Policy, 1990, pp. 53-58). Um dos exemplos mais conhecidos de restrição ao outgoing é a China através da figura do destino turístico autorizado. No panorama nacional, o grande estudioso da matéria é Sancho Silva, destacando-se para além da publicação sob a égide da ANRET A Caracterização do Turismo Interno em Portugal, a sua tese de doutoramento aprovada recentemente na Universidade de Aveiro A visão holística do Turismo Interno e a sua modelação.

Na medida em que estas restrições provocam uma distorção nos fluxos turísticos e são um entrave ao crescimento da indústria, governantes e organizações internacionais têm advogado a sua limitação ou mesmo supressão.

Ao mais alto nível, o Governo poderia, desde a primeira hora, ter aderido ao repto do Presidente de passar férias em Portugal, não proferindo declarações contraditórias neste importante domínio (tal como refiro no artigo de Fátima Valente intitulado Passar férias onde?, Publituris de 11/6/2010, pág. 34, a actuação de Bernardo Trindade pareceu-me positiva contrastando com a menos feliz prestação de Vieira da Silva). David Cameron visando dar um exemplo do seu executivo em matéria de contenção de despesas, determinou que grande parte dos seus ministros – dentre os quais o do turismo, pasta que inovadoramente introduziu, retirando, assim, argumentos aos adversários da solução do ministério do turismo como característica do Terceiro Mundo – passassem a andar de metropolitano. José Sócrates, bem poderia anunciar com ar bem disposto, que tendo dialogado informalmente a esse propósito com os seus ministros e secretários de Estado, todos tinham manifestado o desejo de, sobretudo este ano, passarem as suas férias cá dentro, aproveitando ao máximo as nossas potencialidades turísticas e contribuindo, também eles, para o equilíbrio das nossas contas públicas. Bem o Presidente da República trazendo com grande sentido de oportunidade o turismo interno para a agenda política, mal o Governo, porque não aproveitou, como lhe competia, a onda com a excepção do SET.

Aliás, nessa linha de contenção dos recursos públicos, os nossos deputados, embora não tão ousados no corte de despesa como o governo britânico, passam a viajar em classe económica nos percursos que não excedam três horas e trinta minutos. Excelente exemplo o de Jaime Gama, declarando que apesar da excepção para o presidente da Assembleia República também ele viajará em económica, contrastando com as declarações de José Lello do desprestígio de viajar lá atrás.

Não basta dizer que o balanço entre receitas dos turistas que nos visitam (doze milhões) e despesas realizadas pelos portugueses (um milhão) nas suas deslocações ao estrangeiro é positivo. Era o que faltava que não fosse, já que Portugal tem no turismo uma das suas principais actividades económicas. No entanto, quando se analisa o peso dessas despesas no PIB constata-se que nos Estados Unidos situam-se em 0,8% do PIB enquanto que em Portugal rondam os 2%, aproximando-se, assim, de países muito mais ricos e desenvolvidos como a Alemanha.




Notas finais:

Duas sugestões em matéria de livros: a primeira, Residential Tourism: (De)Constructing Paradise de Mason R. McWatters. A segunda uma obra nacional, Turismo de Nichos: motivações, produtos, territórios, do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, que tem tido um papel muito activo no campo do turismo quer ao nível de conferências quer num programa de doutoramento em turismo, que em parceria com a ESHTE, já vai na 2ª edição. A publicação reúne textos de especialistas altamente qualificados do ponto de vista académico, designadamente Carminda Cavaco, José Manuel Simões, Carlos Ferreira, Joana Neves, Fernando Moreira e Ana Inácio. Gostei particularmente neste panorama de académicos do texto de Humberto Ferreira intitulado Turismo de cruzeiros. Ousar navegar: experiência irresistível. Conheço-o muito mal pessoalmente – jantámos juntos uma única vez, há muitos anos, em Macau – mas acompanho com grande interesse as suas crónicas neste jornal. É o grande especialista, entre nós, da relação do turismo com o mar, reflectindo frequentemente sobre o futuro do turismo português avançando sugestões precisas. Um caso singular de conhecimento e capacidade visionária.

In Publituris nº 1128, de 16 de Julho de 2010, pág. 4

O caso Marsans e a figura da caução: alguns comentários


SÍNTESE


A caução constitui uma das garantias da responsabilidade das agências de viagens, introduzida em 1993, por força da disciplina europeia dos pacotes turísticos.
Ao contrário da ideia veiculada nos últimos dias, quando o consumidor adquire um pacote turístico desfruta, em regra, de maiores garantias comparativamente à aquisição directa dos produtos turísticos que o integram.
A comissão arbitral – mecanismo legal que envolve a participação de várias entidades públicas e privadas – constitui neste momento a melhor solução para os consumidores lesados dado o não reconhecimento legal da figura do Provedor do Cliente, um erro legislativo que urge corrigir.
De harmonia com uma alteração introduzida em 2007, tanto a caução da agência vendedora como a do operador turístico pode ser accionada.

1. INTRODUÇÃO

O turismo, uma das mais promissoras actividades da nossa economia é, no curto período de um mês, alvo de forte atenção dos media. Primeiro a propósito do repto presidencial relativamente às férias dos portugueses cá dentro, agora pelo impacto negativo do caso Marsans envolvendo um significativo número de consumidores que pretendiam gozar as suas férias lá fora.

O objectivo do presente texto é procurar enquadrar, o melhor possível, a problemática fornecendo algumas pistas e comentários para que o leitor possa ajuizar mais fundadamente. Naturalmente que não fujo, num ou noutro ponto mais sensível, a avançar a minha posição.

2. A CAUÇÃO FOI INTRODUZIDA NA LEI DAS AGÊNCIAS DE VIAGENS EM 1993 POR IMPOSIÇÃO DA DIRECTIVA COMUNITÁRIA DAS VIAGENS ORGANIZADAS

A caução decorre do art.º 7º da Directiva (90/314/CEE) do Conselho, relativa às viagens organizadas, férias organizadas e circuitos organizados (vulgarmente conhecida por Directiva das viagens organizadas ou pacotes turísticos) determinando que o operador e/ou a agência que sejam partes no contrato devem comprovar possuir meios de garantia suficientes para assegurar, em caso de falência, o reembolso das quantias entregues pelos clientes e o seu repatriamento.

Considerou-se no plano comunitário que é benéfico tanto para o consumidor como para os profissionais do sector dos pacotes turísticos que os operadores e/ou as agências sejam obrigados a apresentar garantias em caso de insolvência ou de falência.

A Directiva visa na prática a protecção do maior movimento internacional de turistas a nível mundial. Com efeito, nos últimos cinquenta anos verificou-se uma íntima ligação do modelo do turismo de massas com o clima, quer na origem dos turistas (mercados emissores) quer nos destinos turísticos. Nesse período, os fluxos turísticos têm predominado de Norte para o Sul da Europa, durante o Verão, em direcção às zonas costeiras. A região do Mediterrâneo capta actualmente 120 milhões de turistas do Norte da Europa – constituindo, assim, o maior fluxo internacional de turistas a nível mundial – com uma receita superior a € 100 000 milhões e que detém o maior índice de conforto turístico.

No entanto, o clássico pacote turístico que inspirou a Directiva 90/314 assente na brochura, em operadores turísticos de grande dimensão e em charters, cede progressivamente lugar às companhias aéreas low cost e aos dynamic packages impondo-se novas formas de protecção dos interesses dos consumidores que conhecem detalhadamente os destinos mercê da Web 2.0.

Duas curiosidades. A primeira, um dos acórdãos mais importantes do Tribunal de Justiça europeu a propósito da Directiva 90/314, o caso Club-Tour, foi despoletado por um consumidor português. A segunda, o maior evento científico até agora realizado visando comemorar os vinte anos da sua vigência teve lugar recentemente em Faro sob a égide da Universidade do Algarve.

3. AS DUAS GARANTIAS DA RESPONSABILIDADE DA AGÊNCIA DE VIAGENS: CAUÇÃO E SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL

Um dos requisitos para a obtenção da licença de agência de viagens e turismo consiste na prestação de garantias (arts. 5º/2/b) e 6º/2/d) LAVT) que constituem um dos elementos do registo das agências licenciadas a organizar e a manter pelo Turismo de Portugal, I.P. [art.º 10º/2/g)].

Em sede de viagens organizadas, constata-se que uma das menções obrigatórias do programa ou brochura e do contrato de viagem é a identificação das entidades que garantem a responsabilidade da agência organizadora [art.º 22º/1/b)].

Farei de seguida uma breve incursão nos artigos 41º a 54º, que, precisamente, se ocupam das garantias da responsabilidade das agências de viagens. Na LAVT o operador turístico surge, em regra, designado como agência de viagens organizadora mas não existe actualmente qualquer separação legal entre grossistas (organizavam os pacotes mas não podiam vendê-los directamente ao público) e retalhistas (comercializavam os pacotes mas não podiam organizá-los).

4. ÂMBITO DA CAUÇÃO E DO SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL

A actual LAVT, tal como a anterior, dispõe que a garantia da responsabilidade das agências de viagens é assegurada cumulativamente por dois instrumentos, a caução e o seguro de responsabilidade civil (art.º 41º/1).

O nº 2 do art.º 41º enuncia o conteúdo da caução e do seguro de responsabilidade civil, repartindo-o, respectivamente, pelas alíneas a) e b) e c) a e). Note-se, porém, que a Directiva, no seu art.º 7º, refere-se tão somente ao reembolso dos fundos depositados e ao repatriamento do consumidor, aspectos que, no preceito da LAVT em análise, decorrem das alíneas a) e d) do nº 2.

A caução, que constitui uma garantia financeira, assegura dois aspectos fundamentais, o reembolso dos montantes entregues pelos clientes (o operador turístico entra na situação de falência, não se realizando a viagem que o cliente já havia pago) bem como das quantias que hajam despendido mercê da não prestação dos serviços ou da sua prestação defeituosa.

No que concerne ao seguro de responsabilidade civil, tem uma tripla finalidade: 1) assegurar o ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais causados a clientes ou a terceiros; 2) o repatriamento de clientes ou a sua assistência, por motivo que não lhes seja imputável, de harmonia com o art.º 31º; e, por fim 3) a assistência médica e os medicamentos necessários em caso de acidente ou doença que tenham tido lugar durante a viagem.

A reforma de 2007 veio explicitar que se encontram abrangidos os medicamentos que se mostrem necessários após a conclusão da viagem.

5. A PRESTAÇÃO DAS GARANTIAS CONSTITUI UM DOS REQUISITOS DO ACESSO AO MERCADO E DA MANUTENÇÃO DO EXERCÍCIO DA ACTIVIDADE DE AGÊNCIA DE VIAGENS

O art.º 42º vem reiterar o conteúdo dos artigos 5º, nº 2, alínea b) e 6º, nº 2, alínea d), dispondo que a agência de viagens não pode iniciar a sua actividade sem fazer prova documental, junto do Turismo de Portugal, I.P., da regularidade e vigência das garantias.

Tal prova documental não se queda pelo acesso à actividade, já que a agência de viagens deverá periodicamente efectuá-la, junto do Turismo de Portugal, I.P., sendo que tal documentação é condição sine qua non da continuação do exercício da actividade.

6. CAUÇÃO

Constituindo os artigos 41º e 42º disposições comuns à caução e ao seguro de responsabilidade civil, os artigos 43º a 49º disciplinam a matéria da caução.

O nº 1 do art.º 43º assinala, como já se referiu, o âmbito da caução, ou seja, numa perspectiva mínima, garante os reembolsos previstos nas alíneas a) – montantes entregues pelo cliente numa situação de falência ou insolvência da agência e ou operador turístico – e b) do nº 2 do art.º 41º.

Por seu turno, o nº 2 estabelece a possibilidade de tal quantia poder ser prestada através de cauções de grupo, nos moldes a estabelecer em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Economia.

Finalmente, o nº 3, por razões plenamente compreensíveis, determina o depósito do título da prestação de caução no Turismo de Portugal, I.P..

7. FORMAS DE PRESTAÇÃO DA CAUÇÃO

No nº 1 do art.º 44º enumeram-se as diferentes formas de prestação da caução, a saber, seguro-caução, garantia bancária, depósito bancário ou títulos de dívida pública portuguesa.

Exige-se, na parte final do preceito, o seu depósito à ordem do Turismo de Portugal, I.P., prescrevendo o nº 2 o seu carácter imediato e incondicional, isto é, o seu accionamento não pode depender de qualquer tipo de prazos nem do cumprimento de obrigações por parte da agência ou de terceiros.

8. O MONTANTE DA CAUÇÃO É CALCULADO EM FUNÇÃO DE UMA PERCENTAGEM DO MONTANTE DAS VENDAS DE VIAGENS ORGANIZADAS

O valor da caução, ou seja, o montante por ela garantido, é de 5% das vendas de viagens organizadas, não abrangendo, assim, outras espécies de viagens nem a bilheteria.

Existe, no entanto, um limite mínimo (25 000€) e máximo (250 000€) da caução, devendo, para o seu apuramento, ser remetida anualmente ao Turismo de Portugal, I.P. uma comunicação do representante legal da empresa – o seu gerente ou administrador – do montante de vendas realizadas no ano anterior, a qual terá por base uma declaração emitida pelo técnico oficial de contas.

Na ausência desta última declaração, o valor garantido será de 5% da prestação de serviços declarada pela agência no ano anterior, apurado com base na respectiva declaração fiscal de rendimentos.

Com carácter inovador surgiu na reforma de 2007 a possibilidade de agência de viagens comunicar ao Turismo de Portugal, I.P. que não realizou – “não ter praticado” – viagens organizadas no ano anterior. Tal comunicação é efectuada pelo representante legal da empresa, tendo igualmente por base uma declaração emitida pelo respectivo técnico oficial de contas.

9. ACTUALIZAÇÃO ANUAL E REPOSIÇÃO DA CAUÇÃO

O nº 1 do art.º 46º determina que a agência de viagens actualize anualmente o montante garantido pela caução, já que este varia, como se referiu, em função do volume de vendas de viagens organizadas.

Exige-se, complementarmente, que tal actualização seja comunicada ao Turismo de Portugal, I.P..

O nº 2 consagra a regra da reposição do montante garantido pela caução, quando a entidade garante haja procedido ao pagamento de determinada quantia no culminar de um procedimento que referirei de seguida.

10. ACCIONAMENTO DA CAUÇÃO

Quando um cliente de uma agência de viagens pretenda que lhe sejam reembolsados os montantes que entregou ou as despesas suplementares por si suportadas mercê da não prestação dos serviços ou da sua prestação defeituosa, requererá ao Turismo de Portugal, I.P. que demande a entidade garante, devendo instruir o requerimento com os elementos comprovativos dos factos por si alegados. Normalmente, os turistas transportam consigo máquinas fotográficas ou de vídeo que permitem, em regra, demonstrar com rigor os factos que alegam. É também comum que os terceiros prestadores de serviços ou os representantes locais da agência emitam as correspondentes declarações.

O prazo máximo do requerimento de accionamento da caução é, na falta de indicação no programa ou no contrato de viagem de um prazo superior, de 20 dias úteis após o termo da viagem.

Esgotado tal prazo, fica precludida a possibilidade da sua apreciação pela comissão arbitral, prevista no art.º 48º, mas não o recurso aos meios judiciais ou arbitrais para o ressarcimento de tais prejuízos.

Nesse sentido, a reforma de 2007 aditou a sentença judicial e a decisão arbitral. Como é sabido, não obstante a sua importância, a figura do Provedor do Cliente não foi legalmente reconhecida pelo que, no caso vertente, a via mais adequada parece ser a comissão arbitral.

11. APRECIAÇÃO DO REQUERIMENTO DE ACCIONAMENTO DA CAUÇÃO POR UMA COMISSÃO ARBITRAL

O art.º 48º estabelece, de uma forma inovadora relativamente à legislação anterior (os clientes podiam demandar directamente a entidade garante ou solicitar à DGT a apreciação da pretensão, que se traduzia na elaboração de um parecer fundamentado – art.º 47º do Decreto-Lei nº 198/93), que o requerimento de accionamento da caução seja apreciado por uma comissão arbitral, convocada pelo presidente do Turismo de Portugal, I.P. nos 10 dias subsequentes à sua apresentação (nº 1).

A comissão arbitral é composta por cinco elementos, a saber, um representante do Turismo de Portugal, I.P., que assume as funções de presidente, outro do Instituto do Consumidor, um representante da associação patronal das agências de viagens (APAVT) e outro de uma das associações de defesa do consumidor designado pelo cliente e, por fim, um representante da agência.

A presidência da Comissão é, desde há muitos anos, exercida por Carlos Barata, um jurista muito experiente e ponderado que dá excelentes garantias em situações de forte pressão como a vertente. Quando se invoca os fortes atrasos da comissão, naturalmente para denegri-la, não nos podemos esquecer que durante anos foi politicamente mais conveniente acarinhar a situação do Provedor do que dar-lhe meios para cumprir a sua missão. Do meu ponto de vista, deve-se estimular as duas soluções, agilizando a comissão e reconhecendo legalmente a figura do Provedor.

A deliberação sobre o requerimento de accionamento da caução deve ser célere – daí que o nº 5 subtraia a competência de apreciação da comissão arbitral, cometendo-a aos serviços do Turismo de Portugal, I.P. e submetendo-a ao seu presidente quando não se tenha formado a deliberação no prazo referido no nº 2 – isto é, ocorrer nos 20 dias úteis subsequentes à convocação da comissão e forma-se com a maioria simples dos membros presentes, dispondo o presidente de voto de qualidade.

Da decisão, ou melhor, da deliberação da comissão arbitral pode recorrer-se nos 5 dias úteis posteriores à sua formação para o presidente do Turismo de Portugal, I.P..

A apreciação do presidente do Turismo de Portugal, I.P. deverá ocorrer no prazo máximo de 20 dias úteis, formando-se após tal hiato o indeferimento tácito do recurso.

13. DECISÃO FAVORÁVEL DO PEDIDO DE ACCIONAMENTO DA CAUÇÃO

Quando a deliberação da comissão arbitral ou a decisão do presidente do Turismo de Portugal, I.P. deferirem o pedido do cliente da agência de viagens, esta e a entidade garante são disso notificadas, ficando a segunda adstrita ao pagamento, no prazo máximo de 20 dias úteis (art.º 49º).

Nada obsta, porém, que a agência de viagens efectue directamente o pagamento ao seu cliente, sendo que se o pagamento for efectuado pela entidade garante deverá processar-se a reposição do montante de cobertura exigido (art.º 46º/2).

14. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entre outros apertados requisitos a agência de viagens tem de cumprir, por exemplo, um capital social elevado e um seguro de responsabilidade civil, não pode iniciar a actividade ou mantê-la sem fazer prova perante o Turismo de Portugal da existência da caução. Deve ainda remeter anualmente ao Turismo de Portugal uma comunicação do representante legal da empresa do montante de vendas realizadas no ano anterior, a qual terá por base uma declaração emitida pelo técnico oficial de contas.

Ora, nada disto é novo pelo que não se compreendem as críticas do Secretário de Estado Fernando Serrasqueiro ou da própria DECO. Se achavam que o sistema não era bom então deveriam atempadamente ter feito sugestões para melhorá-lo.

Que sentido faz aumentar as garantias das agências de viagens quando o mercado vai ser invadido daqui a poucos meses em consequência da transposição da Directiva Bolkenstein por empresas e individuais que não têm de se licenciar como agentes de viagens apresentando capital e garantias financeiras mínimas?

Cumpre ainda responder à seguinte interrogação: e se em vez da Marsans fosse uma companhia aérea low cost cujas viagens tivessem sido adquiridas directamente? Que garantia teriam os consumidores? Era bom que a DECO e o Secretário de Estado que tutela a Defesa do Consumidor interiorizassem que não haveria nesse caso qualquer caução, que os consumidores estariam totalmente desprotegidos. Este é um dos mercados que oferece mais garantias ao consumidor ao invés da imagem de desconfiança que está a ser transmitida. Em regra, o consumidor está mais protegido adquirindo as suas viagens por intermédio de uma agência de viagens do que fazendo-o directamente, sendo que essa protecção é mais forte quando adquirem pacotes turísticos.

Neste quadro de pouco rigor o SET tem estado bem, remetendo-se a um prudente silêncio não amplificando a discussão.

Quanto à responsabilidade do Turismo de Portugal parece-me claro que a lei não lhe impõe a fiscalização das agências de viagens, se estão saudáveis financeiramente ou se podem vir a ter problemas. Mais, a fiscalização da Lei das Agências de Viagens é cometida não ao Turismo de Portugal mas à ASAE.

Surgiu, entretanto, a dúvida sobre se a agência que vende os pacotes turísticos organizados por outrem também deve prestar caução na tal proporção dos 5% das vendas ou tal obrigação recai apenas sobre o operador. Em 2007, a lei foi alterada e consagrou-se, como refiro acima, a possibilidade da agência de viagens comunicar ao Turismo de Portugal que não realizou – “não ter praticado” – viagens organizadas no ano anterior.

Aqui reside uma parte do problema: entender-se que a expressão praticado abrange tão somente os pacotes organizados pela agência. Daí que, relativamente aos comercializados por si mas organizados pelo operador, a maior caução seria do operador e ser-lhe-ia fixado o valor mínimo de 25 000€. Teríamos, assim, caução proporcional a 5% das vendas para a agência que actua como operador e pelo valor mínimo de 25 000€ para as agências que se limitam à sua comercialização.

Como o cliente pode optar entre a caução da agência com que contratou directamente ou daquela que organizou o pacote (art.º 47º/2) não haveria, em princípio, prejuízo para o consumidor. Com este entendimento está salva a orientação do Turismo de Portugal embora deite por terra o entendimento da APAVT que os consumidores não poderiam accionar a caução dos operadores. Não vejo como, na medida em que a lei claramente lhes permite optar entre a caução da agência vendedora ou da agência organizadora.

Já o Dr. Luís Patrão aparentemente falou demais, contrastando com o adequado silêncio do SET. Em 6 de Julho declarava à Lusa que a “entidade, face ao caso Marsans, vai publicar no seu site o registo de cada uma das agências de viagens, incluindo a respectiva caução”. O problema é que tal registo constituía uma obrigação sua desde Julho de 2007 como decorre do art.º 10º da Lei das Agências de Viagens alterada pelo Decreto-Lei nº 236/2007, de 20 de Julho.

Finalmente, a posição da APAVT que ainda em Junho de 2010 emitiu um comunicado onde aconselha “os consumidores a seleccionarem criteriosamente as agências que contratam”. Sugerindo que os consumidores recorram às agências associadas da APAVT enaltece as garantias que estas oferecem, designadamente “qualidade de serviço” por razões “estatutárias,” “posição no mercado” e “estrito cumprimento da Lei”. Acrescenta ainda que estão “subordinadas a um Código de Conduta que exclui, naturalmente, este tipo de práticas [estavam em causa cerca de 50 bilhetes de cidadãos brasileiros que a Montra VIP alegadamente havia recebido mas que não havia pago à companhia aérea]. Por outro lado, os associados da APAVT estão também obrigados a cumprir as decisões do Provedor do Cliente, que só é chamado a decidir se o consumidor assim o entender, o que, sendo uma manifestação clara de auto-regulação, é mais uma garantia de qualidade dos serviços prestados”.

Bem, se o Turismo de Portugal não fiscalizou adequadamente a situação financeira da agência de viagens – mesmo aceitando-se que o poderia legalmente fazer – a verdade é que os mecanismos de auto-regulação da APAVT também não permitiram melhores resultados.

Publituris on-line de 16 de Julho de 2010

terça-feira, 8 de junho de 2010

A Conferência de Joanesburgo


O desenvolvimento sustentável radica no equilíbrio entre os aspectos económicos, sociais e ambientais.


O percurso iniciado em Estocolmo (1972) e cimentado no Rio (1992) desdobrou-se compreensivelmente numa multiplicidade de caminhos que se reúnem em Joanesburgo, em Agosto e Setembro de 2002, em que a agenda do desenvolvimento sustentável volta a estar em cima da mesa para discussão.

No Rio, os líderes mostraram-se solidários com os objectivos e tomadas de posição da conferência, em Joanesburgo importa fundamentalmente ultrapassar o fosso entre o compromisso político e a sua implementação prática.

Os enormes desafios da globalização e o impacto do 11 de Setembro acentuaram esta necessidade. Solidariedade entre povos ricos e pobres encontra-se no centro da discussão. Daí que questões como a melhoria das trocas comerciais, acesso aos mercados, eliminação de subsídios contraproducentes, redução da dívida e aumento da ajuda pública ao desenvolvimento são algumas das traves mestras da agenda global do desenvolvimento sustentável.

A Conferência apontou a necessidade de consolidar os progressos nestas áreas, com base noutros processos relevantes designadamente os de Doha e Monterrey.


A clara assunção pela maioria dos Estados-Membros da ONU que um desenvolvimento sustentável radica no equilíbrio entre os aspectos económicos (eficácia económica), sociais (justiça social) e ambientais (conservação ambiental) é certamente um dos maiores avanços dos últimos trinta anos, abrindo caminho para uma planificação integrada e uma melhor fundação para as decisões políticas aos mais variados níveis.

Notas:

1- A saída de Jorge Umbelino da administração do Turismo de Portugal, IP constitui, do meu ponto de vista, um daqueles exemplos em que a substituição só é explicável por questionáveis critérios políticos fazendo-se tábua rasa da competência consensualmente demonstrada no exercício do cargo.
Perante as minhas dúvidas sobre o acerto de algumas medidas governativas sempre se mostrou solidário com a linha governamental e reconheço que a argumentação por si avançada foi nalgumas situações convincente. Ocorre-me até um episódio curioso da solidariedade governamental extrema, característica desta governação socialista do turismo, em que os críticos do regime foram mantidos à distância: apesar de termos sido colegas de docência declinou o convite para apresentar um livro meu.
Profundamente conhecedor das matérias no plano prático presenciei algumas intervenções suas em provas académicas na área do turismo que causaram boa impressão: sempre cordato com os candidatos mas incisivo na argumentação.
Uma dupla valência: no dia a dia da gestão pública do turismo e na componente académica deste sector.
Da ascensão meteórica de Ana Mendes Godinho a vice-presidente do Turismo de Portugal devo dizer que não é no facto de ter sido chefe de gabinete do SET que reside o problema: António Guterres, um dos políticos mais brilhantes da sua geração, foi chefe de gabinete de Salgado Zenha. O problema é que, apesar de ter acompanhado a feitura do RJET, não terá a experiência e a profundidade de conhecimentos de Jorge Umbelino na área dos empreendimentos turísticos, que na governação de Vítor Neto foi sub-director geral do turismo. É trocar o certo e consensual pelo incerto.
A vice-presidência é explicável pelo aumento do poder de Bernardo Trindade e um correlativo enfraquecimento de Luís Patrão.

2- O Turismo de Portugal, IP deixa degradar, para além dos limites do razoável, as instalações do Estoril, uma escola de referência do turismo nacional. Jorra água do tecto da biblioteca (dispõe de um importante acervo bibliográfico e poderosas ferramentas digitais de investigação), as instalações sanitárias exalam um cheiro fétido, algum do mobiliário escolar há muito que devia ter sido substituído. Um confrangedor panorama geral de degradação no interior e exterior do edifício que poderia ter sido combatido, pelo menos em parte, com os recursos financeiros associados à fracassada experiência do HMI.

3- Paulo Neves vê chegar ao fim o julgamento que durante vários anos certamente afectou a sua tranquilidade pessoal e condicionou a sua carreira. Caídas as várias acusações, parece-me particularmente elucidativo o seguinte excerto da sentença do Círculo Judicial de Faro: “Da matéria de facto julgada provada não resulta qualquer comportamento do arguido que seja merecedor de censura, muito menos penal”.
Actualmente administrador hospitalar, está ligado ao turismo através da excelente iniciativa Algarve Medical Tourism.

In Publituris nº 1122, 4 de Junho de 2010, pág. 4

segunda-feira, 10 de maio de 2010

O terramoto Bolkestein e a derrocada do pilar da exclusividade das agências de viagens


O princípio da exclusividade em que durante mais de meio século assentou a regulamentação das agências de viagens apresenta-se agora como um dos obstáculos a remover em ordem à livre prestação de serviços no interior da União Europeia.


1) A Directiva e o estruturante princípio da liberdade de prestação de serviços

A Directiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2006 in JOCE L 376/36 de 27.12.2006, mais conhecida por Directiva dos Serviços ou Directiva Bolkestein em homenagem a Frits Bolkestein, antigo Comissário Europeu para o Mercado Interno e Fiscalidade, tem profundas implicações em diferentes sectores da economia da União Europeia designadamente no que respeita à matéria de agências de viagens (ver a este propósito o considerando nº 33 do diploma comunitário) e operadores turísticos, facilitando consideravelmente o acesso ao mercado e eliminando as situações de monopólio legal.

As críticas ao diploma centram-se nos seguintes aspectos: 1º) Excessiva desregulamentação do mercado interno provocando um aumento da concorrência desleal; 2º) Enfraquecimento da coesão social; 3º) Diminuição da qualidade do emprego. No entanto, para os seus defensores, este quadro jurídico unitário permite liberalizar os serviços no mercado interno – os quais representam 70% da actividade económica da União Europeia – eliminando os obstáculos à sua livre circulação, potenciando a criação de emprego e criando mais vantagens para os consumidores.

A União Europeia não tem um corpo de normas relativas ao acesso à profissão de agente de viagens sendo que uma maioria relativa de países adoptava, até à disciplina comunitária em análise, o sistema do licenciamento associado ao princípio da exclusividade.

A Directiva norteada pela eliminação dos obstáculos à livre prestação de serviços restringe fortemente o regime de autorização – como sucede na licença para a actividade de agência de viagens e turismo – o qual só pode ter lugar num apertado triplo requisito de natureza cumulativa: 1º) Não ser discriminatório em relação ao prestador visado; 2º) Justificado por uma razão imperiosa de interesse geral; 3º) O objectivo não poder ser alcançado através de uma medida menos restritiva (art.º 9º, nº 1).

A regra fundamental encontra-se plasmada no nº 1 do art.º 16º, a da liberdade de prestação de serviços segundo a qual os Estados-Membros devem respeitar o direito dos prestadores desenvolverem os seus serviços num Estado-Membro diferente daquele em que se encontram estabelecidos. Ou seja, o Estado-Membro em que o serviço é prestado deve assegurar no seu território o livre acesso e exercício da actividade no sector dos serviços.

Esta extraordinária facilidade de aceder ao mercado origina uma forte depreciação, para não dizer supressão, do valor dos muitos alvarás que neste momento estão à venda no mercado em razão da difícil situação da economia.

Desde logo, a taxa de aproximadamente 12 500€ pela obtenção do alvará sofrerá uma redução substancial pois, na taxa, diferentemente do imposto, existe um nexo de reciprocidade, constituindo o pagamento de um serviço prestado pelo Estado, tratando-se, assim, de uma remuneração manifestamente desproporcionada (argumento já antigo, nunca suficientemente ponderado e que na primitiva versão da lei terá levado à previsão que uma parte fosse aplicada em instituições de apoio ao agente de viagens, intenção legislativa que não foi levada à prática). Mas também o exigente requisito do capital social mínimo de 100 000€ suscita dificuldades de compatibilização com o novo enquadramento comunitário.

Já a caução e o seguro de responsabilidade, porque decorrem de outra Directiva (a 90/314 relativa aos pacotes turísticos), não sofrem alterações significativas mas simples ajustamentos.

O leque de serviços contemplado na Directiva é muito amplo, abrangendo no sector do turismo para além das agências de viagens, o aluguer de automóveis e ainda os serviços no domínio do turismo, nestes se incluindo os guias turísticos, os serviços de lazer, os centros desportivos e os parques de atracções. Daí a enorme amplitude das reformas legislativas francesa e espanhola.

O apurado estudo das diferentes legislações apresenta um grande interesse prático.


2) A reforma francesa

A nova lei estabelece um regime único aplicável a todos os operadores de viagens – os quais, independentemente de se tratar ou não de uma agência de viagens –, devem dispor de idênticas garantias financeiras, seguro de responsabilidade civil profissional e de aptidão profissional. É fixado em 100 € o custo da inscrição no registo de agentes de viagens e de outros operadores de venda de viagens.

3) A reforma espanhola

Em Espanha, a Andaluzia aprovou oito decretos que simplificam um conjunto de procedimentos relativamente à actividade económica do turismo. No caso das agências de viagens, tal como em França, foi eliminado o sistema de exclusividade na venda de serviços turísticos embora se mantenha no campo dos pacotes turísticos.

Assim, a intermediação dos serviços turísticos pode ser desenvolvida por qualquer operador do sector, revogando-se consequentemente o decreto que regulamentava as centrais de reservas.

Para abrir uma agência de viagens será a partir de 2010 exigida tão somente a comunicação ou declaração de responsabilidade.

In Publituris nº 1118, de 7 de Maio de 2010, pág. 4

terça-feira, 13 de abril de 2010

A pioneira Conferência de Estocolmo: um marco no Desenvolvimento Sustentável



As conferências de Estocolmo (1972), Rio de Janeiro (1992) e Joanesburgo (2002) constituem as principais etapas na afirmação do paradigma do desenvolvimento sustentável.

Perante os devastadores efeitos da actividade industrial das grandes potências no período pós 2ª Guerra toma-se gradualmente consciência, numa parte ainda restrita da sociedade civil e da classe política, da gravidade do problema e da premente necessidade de proteger os recursos naturais.


No entanto, na década de sessenta, a ONU não estava preparada para lidar com um conjunto de questões intersectoriais e de âmbito transnacional resultantes de um avanço científico e tecnológico sem precedentes que se havia registado após o segundo conflito mundial, pelo que uma das consequências negativas desse desenvolvimento foi o ambiente.


Seria a Suécia, através do seu representante das Nações Unidas, Sverker Åström, a inserir esta questão fundamental na agenda da Assembleia Geral em 1968, propondo uma acção global orientada para identificar os problemas ambientais que necessitavam de cooperação internacional. Uma excelente operação diplomática ultrapassando as resistências dos Estados desenvolvidos, sobretudo os da Europa Ocidental, que argumentavam ser o ambiente melhor tratado através das agências sectoriais. O modelo de conferência proposto viria a revelar-se um sucesso, não obstante ainda hoje ser patente não se ter alcançado uma actuação integrada e uma visão holística da problemática.


Nas diferentes instâncias internacionais será, assim, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (United Nations Conference on the Human Environment) reunida em Estocolmo, em Junho de 1972 – mais conhecida pela designação informal de Conferência de Estocolmo – a reconhecer, pela primeira vez, o direito do indivíduo a uma digna qualidade do ambiente e a fixar um conjunto de critérios para os Estados implementarem por forma a alcançarem uma utilização racional dos recursos naturais.


Só há uma Terra (Only One Earth) foi o lema da Conferência, um conceito verdadeiramente revolucionário para a época, mas que hoje goza de uma notoriedade e consensualidade mundiais.


A Conferência de Estocolmo constitui, assim, a primeira iniciativa coordenada ao nível global para encontrar soluções para os crescentes problemas em matéria ambiental e definir as respectivas linhas de acção. A conferência focalizou-se precisamente na cooperação internacional em matéria de ambiente.


Organizada pela ONU tinha como objectivo discutir os efeitos negativos do desenvolvimento humano, projectando-os nos media e proceder à identificação dos problemas ambientais que necessitassem de uma mobilização internacional conjunta.


Alguns dos grandes líderes internacionais participaram na conferência, designadamente Indira Gandhi que pôs em destaque a inter-relação estreita entre o aumento da pobreza e os danos ambientais, abrindo o terreno para mais de trinta anos sobre a discussão da temática. Também a China, que, pouco antes, se tornara membro da ONU participou na conferência ao invés dos países do bloco soviético, então no meio guerra fria. No entanto, o activo envolvimento da União Soviética na preparação da conferência permitiu atenuar os efeitos da sua ausência.

Ocorria igualmente uma contradição entre os que consideravam que o desenvolvimento comportava inevitavelmente a afectação dos recursos ambientais e os que defendiam o meio ambiente. Outros países, sobretudo o Brasil e a Argélia, encaravam com grandes reservas a conferência por constituir uma forma de desviar as atenções para as reais necessidades de desenvolvimento dos países mais pobres.

A Conferência induziu à criação de ministérios do meio ambiente em mais de uma centena de países e o surgimento de organizações não governamentais ligadas à causa ambiental. Como seria de esperar os seus efeitos não se sentiram de imediato pois ainda não existia uma tomada de consciência alargada da extensão dos danos que se estavam a produzir no ambiente.


O Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA) foi estabelecido em Nairobi como um instrumento para promover os resultados da Conferência de Estocolmo.


No entanto, a partir dos anos 1980, a consciência ambiental começou a ganhar mais importância em razão da maior frequência e gravidade com que foram surgindo os problemas ambientais. Um dos exemplos mais notórios foi o do buraco na camada de ozono, descoberto em 1985, por cientistas ingleses. A principal causa para este fenómeno foi a utilização de clorofluorcarbonetos (CFC) em diversos produtos, tais como os sistemas de refrigeração e aerossóis.


A Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano – a qual comporta um preâmbulo com sete considerandos e vinte e seis princípios – teve um papel importante no rápido desenvolvimento do Direito Internacional do Ambiente. De um punhado de convenções internacionais na década de sessenta existem hoje mais de duas centenas.


In
Jornal Planeamento e Cidades, nº 21, Março/Abril de 2010, pág. 29