quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

20 Anos de Regionalização Turística: Uma Pacífica e Sólida Inovação


Evento revelador de uma enorme capacidade de antecipação e inovação das gentes do turismo, que souberam arquitectar, construir e manter um sólido edifício normativo, o qual atravessou dois decénios incólume às mutações políticas e económicas.

No próximo dia 16 de Agosto, decorrem precisamente 20 anos sobre a publicação do primeiro diploma – Decreto-Lei nº 327/82 – que instituiu as regiões de turismo com os traços que actualmente as caracterizam: pessoas colectivas de direito público dotadas de autonomia administrativa e financeira.

Evento revelador de uma enorme capacidade de antecipação e inovação das gentes do turismo, que souberam arquitectar, construir e manter um sólido edifício normativo, o qual atravessou dois decénios incólume às mutações políticas e económicas. Aproximando a administração do turismo dos cidadãos e empresas, de forma indubitavelmente mais eficaz em certos domínios comparativamente à administração central ou autárquica.

No entanto, tal disciplina constitui o epílogo de uma evolução quase secular, pelo que se impõe um breve excurso sobre os antecedentes da administração local e regional do turismo.

1) Comissões de iniciativas

Na I República, a Lei nº 1152, de 23 de Abril de 1921, estabeleceu, com carácter pioneiro, órgãos locais de turismo em sede municipal, ao criar as denominadas comissões de iniciativas em todas as estâncias hidrológicas e outras, praias, estâncias climatéricas, de altitude, de repouso, de recreio e de turismo.

As estâncias podiam abranger a totalidade ou, mais frequentemente, uma parte da área de um município.

A finalidade da criação das comissões de iniciativas era a da promoção do desenvolvimento

das estâncias, executando para o efeito obras de interesse geral ou iniciativas para aumentar a sua frequência e o fomento do turismo.

Não integravam a administração autárquica e eram constituídas por aproximadamente onze vogais, representando em proporção mais ou menos equivalente entidades públicas e privadas, não raro com prevalência para estas últimas, cujo mandato tinha a duração de um biénio.

Para prover às suas despesas cobravam uma taxa de turismo e também uma percentagem da contribuição industrial das sociedades que explorassem as concessões de águas minero-medicinais ou que nelas exercessem comércio ou indústria. O mesmo sucedia relativamente à contribuição predial das propriedades da localidade, arrecadando uma percentagem daquele imposto.

2) Código Administrativo – criação de zonas de turismo

No Estado Novo, surgem-nos os arts 117º a 133º do Código Administrativo (1940), dedicado às zonas de turismo, de harmonia com uma perspectiva de reforma da administração local do turismo.

Refira-se, porém, que apesar das profundas alterações ocorridas no regime jurídico das autarquias locais após o 25 de Abril de 1974, tal acervo normativo ainda mantém a sua vigência.

No artº 117º referem-se as características turísticas dos concelhos que poderiam dar lugar à criação de zonas de turismo. Quando nos concelhos existissem «praias, estâncias hidrológicas ou climáticas, de altitude, de repouso ou de recreio, ou monumentos e lugares de nomeada», tais características podiam motivar a criação de uma zona de turismo.

A iniciativa tanto provinha de requerimento da câmara municipal como de proposta dos serviços centrais de turismo.

A criação da zona de turismo opera-se através de um acto normativo – decreto regulamentar referendado por dois Ministros – e não por acto notarial.

§ Administração das zonas de turismo: comissões municipais e juntas de turismo

O artigo 118º do Código Administrativo estabelece uma distinção fundamental, ou seja, dois diferentes sistemas de administração consoante a sede da zona de turismo coincida ou não com a sede do concelho.

Se a sede das zonas de turismo, que figura obrigatoriamente no decreto que as institui, é a mesma da sede do concelho, as respectivas câmaras municipais administram-nas directamente assistidas pelas comissões municipais de turismo.

No caso de não coincidirem, isto é, serem diferentes as sedes da zona de turismo e a do concelho, v.g. praias e termas, então a administração já não cabe directamente às câmaras municipais mas a juntas de turismo.

Em ambos os casos a gestão das zonas de turismo é uma gestão própria, distinta da administração municipal comum, com o seu próprio plano e orçamento disciplinador das suas próprias receitas e despesas.

As zonas de turismo encontravam-se sujeitas à tutela do Ministério do Interior sobre a administração autárquica e nalguns aspectos à tutela dos serviços centrais de turismo.

O artº 121º determinava a consignação das receitas especiais das zonas de turismo às suas despesas, sendo que ambas eram anualmente avaliadas pelos órgãos gestores das zonas de turismo Com efeito, as zonas de turismo não tinham personalidade jurídica, pelo que não dispunham de órgãos próprios.

Constavam tais receitas e despesas de um orçamento anexo ao orçamento municipal, dispondo os serviços centrais de turismo do poder de emitir instruções sobre a sua organização, conformando-o por essa via.

3) A criação das Regiões de Turismo pela Lei nº 2082

Os órgãos de turismo anteriormente referidos – comissões de iniciativas e zonas de turismo – não têm âmbito supra municipal mas municipal ou inframunicipal. A necessidade de criação de regiões de turismo, isto é, de órgãos de turismo com jurisdição supramunicipal, decorre das conclusões 23ª a 27ª do parecer nº 25/V da Câmara Corporativa, para os casos em que a resolução dos problemas nessa área embora ultrapassassem os interesses estritamente locais ainda assim não atingissem a dimensão nacional. Ou seja, entre o plano dos interesses turísticos locais e o plano nacional interpunha-se, na óptica da Câmara Corporativa, um outro, o dos interesses turísticos regionais, que conduzia à criação de organismos de nível territorial supramunicipal.

No seguimento de tal parecer, a Assembleia Nacional aprovou a Lei nº 2082, de 4 de Junho de 1956, a qual foi regulamentada no que tange às regiões de turismo pelo Decreto nº 41035, de 20 de Março de 1957.

De harmonia com o primeiro diploma, que operou uma reforma profunda da administração do turismo, incumbia ao Estado, por intermédio dos órgãos centrais em colaboração com os locais, promover a expansão do turismo nacional.

Em matéria de turismo a acção estadual era exercida pelo Serviço Nacional de Informação, através dos seus serviços de turismo.

Previa-se igualmente o funcionamento junto da Presidência do Conselho de um órgão consultivo, o Conselho Nacional de Turismo. A sua composição constava da Base IV, competindo a presidência ao Ministro da Presidência, enquanto os vogais eram, na sua esmagadora maioria, representantes de entidades privadas. Estabeleciam-se três tipos de órgãos locais da Administração com competência em matéria de turismo. As câmaras municipais assistidas pelas comissões municipais de turismo, seguindo-se as juntas de turismo e, por fim, as comissões regionais de turismo.

Estas últimas constituíam o órgão de administração das regiões de turismo, sendo que a criação destes órgãos de administração turística com jurisdição supramunicipal implicava a extinção dos órgãos locais até então existentes, isto é, das juntas de turismo ou das comissões municipais de turismo, consoante os casos. Os bens que se encontrassem afectos às zonas de turismo englobadas na região de turismo reverteriam para o nóvel organismo supramunicipal.

Os requisitos para a criação das regiões de turismo não eram muito exigentes: complementaridade de duas ou mais zonas de turismo ou até a possibilidade da sua criação inexistindo qualquer zona nessa área, podendo inclusivamente a área da nova figura ser superior ao conjunto das zonas de turismo nela englobadas. Tal como no regime actual, a criação das regiões de turismo dependia de um acto normativo do Governo – um decreto – atribuindo-se tal competência à Presidência do Conselho.

A iniciativa da criação da região de turismo poderia ser do próprio Governo ou de proposta conjunta de todas ou de algumas câmaras municipais ou juntas de turismo interessadas. As juntas de turismo ou câmaras municipais que não despoletassem o processo de criação – de iniciativa governamental ou de outras câmaras ou juntas de turismo – eram, de qualquer modo, sempre ouvidas.

Mantendo-se a tradicional composição tripartida – administração central, local e actividades económicas privadas –, nas comissões regionais de turismo ressalta de imediato a menor representação de entidades privadas comparativamente às comissões de iniciativas e zonas de turismo.

O presidente, que deveria obrigatoriamente residir na região, era designado pelo Serviço Nacional de Informação. Quanto aos vogais: um representante de cada uma das câmaras municipais de concelhos abrangidos pela região, apenas um representante das actividades económicas e, por fim, um representante das associações culturais de defesa local, caso existissem. O mandato correspondia a um quadriénio.

As comissões regionais de turismo gozavam de autonomia administrativa e financeira, mas como as regiões de turismo não dispunham de personalidade jurídica estas últimas não poderiam ser titulares de património próprio.

A competência das comissões regionais de turismo era a que o Código Administrativo e legislação complementar atribuíam às juntas de turismo.

Também quanto às receitas das regiões de turismo se operava a remissão para o regime então existente. Eram aquelas que podiam ser cobradas pelos órgãos locais – juntas de turismo ou câmaras municipais – das zonas de turismo englobadas na região de turismo ou aquelas que pudessem ser cobradas no pressuposto de que os concelhos interessados constituíssem as zonas de turismo.

As regiões de turismo eram então tuteladas pelo Serviço Nacional de Informação, que aprovava o plano anual de actividades e o orçamento bem como o relatório anual de gerência.

Ao nível regulamentar enumerava-se a competência do presidente da comissão regional de turismo.

Realce-se a circunstância de não nos encontrarmos ainda perante verdadeiros e próprios órgãos autárquicos em matéria de turismo mas de órgãos da administração estadual do turismo.

Tal passo só virá a ocorrer com a profunda alteração do quadro legal das autarquias locais decorrente do 25 de Abril e do novo regime das regiões de turismo instituído pelo Decreto-Lei nº 327/82, de 16 de Agosto.

4) Decreto-Lei nº 327/82, de 16 de Agosto

Enquanto nas I e II Repúblicas assistimos a um claro predomínio dos órgãos locais de turismo sobre os regionais, tal tendência inverte-se no primeiro decénio da III República.

A reformulação, com profundidade, do regime jurídico das regiões de turismo surge volvidos alguns anos sobre o 25 de Abril de 1974, na sequência natural da profunda mutação registada no quadro normativo das autarquias locais, através do Decreto-Lei nº 327/82.

Configurando-se como uma lei da regionalização turística, a grande inovação consiste na atribuição de personalidade jurídica às regiões de turismo, agora consideradas pessoas colectivas de direito público, e no princípio da exclusiva iniciativa municipal no despoletamento do seu processo de criação. Ou seja, a iniciativa já não pertence ao Governo, embora a criação do ente público dependa de um acto normativo de sua autoria.

Confluência das vontades autárquicas e governamental, pois, formada a vontade conjunta dos municípios, a criação da pessoa colectiva depende ainda de uma vontade governamental de sentido idêntico.

Sublinhe-se que neste regime de 1982, tal como no actual – Decreto-Lei nº 287/91, de 9 de Agosto (LRT) –, o Governo pode não concordar com a criação de uma região de turismo e nada o obriga a fazê-lo.

Convém, no entanto, alertar para o facto de esta tendência de atribuição de personalidade jurídica às regiões de turismo preceder, em aproximadamente dois anos e meio, o Decreto-Lei nº 327/82. Com efeito, três decretos-leis – como sucede no domínio da actual disciplina e não por portaria como determinava o Decreto-Lei nº 327/82 –, que instituíram as regiões de turismo de S. Mamede (Alto Alentejo), Alto Minho (Costa Verde) e Douro Sul já lhes atribuíam personalidade jurídica.

Aos dois princípios acima mencionados juntar-se-ão o da supremacia municipal no controlo dos órgãos das regiões de turismo e o da representação minoritária do Estado, bem como os da descentralização e do associativismo autárquico.

Como se dá nota em sede preambular, existia uma complicada diversidade de regimes e dificuldades hermenêuticas relativamente às comissões regionais de turismo, consoante tivessem sido criadas no domínio do Estado Novo ou na III República, e até em diferentes momentos desta última.

Tal acervo normativo surge-nos, assim, com um intuito normalizador, de reestruturação da diversidade dos órgãos existentes, procurando dotar todo o continente de órgãos de âmbito espacial conveniente, ou seja, procurando alcançar-se nesta sede uma cobertura plena do território continental. À região autónoma da Madeira, tal como à dos Açores, não era aplicável o Decreto-Lei nº 327/82. Tal exclusão manteve-se na LRT (artº 39º), que as subtraiu do seu âmbito territorial de aplicação.

Embora ainda não se exija a contiguidade das áreas, afirma-se o princípio da coincidência da área da região de turismo com a dos municípios que a integram. A organização das regiões de turismo assentava numa estrutura tripartida, um órgão do tipo assembleia, a comissão regional, o presidente da comissão regional (que constitui actualmente um simples cargo e não um órgão) e a comissão executiva. Diferentemente do direito anterior, o presidente é agora eleito pela assembleia da região e não designado pela administração central.

Para além destes órgãos obrigatórios, previa-se um outro de carácter facultativo, o conselho consultivo, que integrava as entidades públicas ou privadas convidadas pelo presidente da câmara municipal, e também as que desenvolvessem a sua actividade na área da região, com a particularidade de deverem solicitar a inscrição e pagar a respectiva quotização.

A comissão regional mantinha a tradicional composição tripartida: representantes dos municípios, representantes públicos e das entidades privadas.

Integrava ainda a comissão regional um secretário-geral, designado pela entidade tutelar, que não dispunha, porém, do direito de voto.

A comissão executiva era composta por um presidente e um número variável de vogais, até cinco, os quais eram eleitos pela comissão regional para um mandato com a duração de um triénio. O secretário geral da comissão regional – cargo actualmente desaparecido – integrava também a comissão executiva.

Previa-se a possibilidade de federações das regiões de turismo e manteve-se a extinção ope legis das zonas de turismo compreendidas nas áreas das regiões de turismo que fossem entretanto criadas.

O Decreto-Lei nº 327/82, em razão de um assumido cunho de regionalização turística, constitui, assim, um marco fundamental e incontornável na disciplina das regiões de turismo. Os seus traços essenciais foram incorporados no Decreto-Lei nº 287/91 (LRT) pelo que ainda hoje regulam a administração supramunicipal do turismo.

Decorridos vinte anos sobre essa consensual e bem alicerçada guinada regionalista é de elementar justiça assinalar tal passagem e homenagear os seus mentores. Bem hajam!

Carlos Torres
Advogado
Turisver, Ano XVII – nº 575 – 5 de Agosto de 2002