quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Pensar a Qualidade das Leis do Turismo


O responsável governamental deve anunciar previamente o calendário legislativo e proceder à enumeração das suas linhas gerais. Quando estiverem em causa os grandes diplomas, deve constituir-se uma comissão de reforma legislativa, de composição alargada, que reflicta as várias instituições públicas do turismo e as suas associações empresariais, em ordem a uma maior legitimação ética e política da lei. Presidida por um antigo e prestigiado governante, os respectivos membros poderão apresentar sugestões e projectos alternativos, sendo ulteriormente divulgados publicamente os trabalhos da aludida comissão de molde a combater-se a opacidade do processo legislativo.

Em qualquer caso, deve fixar-se um prazo razoável para a elaboração de projectos de diploma por forma a que todos os aspectos sejam convenientemente ponderados pelos técnicos, evitando-se uma nova revisão da lei a curto prazo, prevenindo-se as rectificações. Há que fazer um esforço sério no sentido da melhoria da qualidade dos preâmbulos e fixarem-se vacatio legis minimamente razoáveis. A estabilidade das leis é outro importante valor a observar.

No turismo, tal como noutros sectores da economia, a legislação assume uma grande importância. Sendo este artigo publicado numa edição do Turisver de pendor mais reflexivo, tentarei enunciar alguns princípios e regras que devem nortear a produção normativa desta importante actividade económica.

Em primeiro lugar, o responsável governamental deve anunciar previamente o calendário legislativo e proceder à enumeração das suas linhas gerais. Expondo a necessidade de alteração da lei existente ou da sua substituição por um novo diploma, escrutinando as alternativas existentes, apoiando-se para o efeito numa exigente e aprofundada análise dos custos-benefícios e custos-efeitos do processo legislativo.

No plano da preparação das leis, maxime quando estiverem em causa os grandes diplomas da legislação turística, deve constituir-se uma comissão de revisão ou de reforma legislativa que integre, entre outros, representantes da SET, DGT, regiões de turismo, CTP e demais associações empresariais. A informação sobre o turismo é hoje demasiado complexa e fragmentada, insusceptível de ser apreendida e adequadamente tratada por um notável ou grupo restrito de notáveis. Quanto maior for o espectro de representação e intervenção da sociedade civil na construção das normas jurídicas do turismo, maior é a legitimação ética e política da lei.

Em qualquer comissão de revisão ou reforma legislativa, sobretudo de composição alargada, é assaz importante a figura do seu presidente. Daí que se deva atribuir a presidência a um antigo e prestigiado governante, leia-se a um anterior Secretário de Estado do Turismo, não me parecendo essencial que tenha formação jurídica.

Nalgumas situações até poderá ser vantajosa outra formação, evitando que a discussão se centre excessivamente em minudências jurídicas em detrimento das grandes questões de fundo.

Os trabalhos da comissão terão por base um projecto de diploma legal, podendo qualquer dos membros da comissão apresentar sugestões ou alterações, discutindo-se capítulos, secções ou blocos de artigos mediante prévio agendamento.

Os trabalhos preparatórios da lei deverão ser divulgados publicamente logo que concluídos ou até por fases se tal se justificar. Nesse sentido, deverão existir actas que reproduzam fiel e pormenorizadamente as opiniões dos membros. Combatendo a opacidade do processo legislativo, evitando que quem intervém na feitura das leis fique numa posição privilegiada relativamente aos seus concidadãos e até possa colher da menor clareza de alguns preceitos ou institutos vantagens profissionais. A transparência do processo legislativo deve, pois, ser a maior possível, podendo todos os cidadãos, se nisso tiverem interesse, conhecer as diferentes soluções que foram gizadas para determinado problema e a ratio que vingou em determinado preceito legal.

A figura do secretário da comissão – inclino-me para que disponha de um estatuto pleno, isto é, do direito de participação e de voto – é, assim, importante, atento o grau de dificuldade de elaboração das actas. Sendo desejável, por razões de celeridade dos trabalhos da comissão, que tenha sólida formação técnica, experiência na matéria e um perfil gerador de consensos que lhe permita apresentar projectos alternativos. Não raro existem opiniões largamente consensuais que se transformam em antagonismos ou impasses quando passam a letra de lei.

O prazo para a realização dos trabalhos da comissão deverá rondar quatro a seis meses, partindo do pressuposto que a comissão reúne semanalmente e que tem por missão apenas a normação (decreto-lei e respectivo decreto-regulamentar) de um dos sub-sectores da legislação turística. Mais do que um sub-sector, haverá que proceder ao alargamento, não necessariamente proporcional, do prazo. Fico apreensivo quando se anuncia a revisão de legislação em períodos de dois ou três meses, ou até menos. A pressão política conduz à precipitação dos técnicos que executam tais alterações legislativas, permitindo-lhes tão somente uma abordagem superficial das matérias que, em muitos casos, implica que a lei volte a ser revista decorridos um ou dois anos.

A existência de um prazo razoável para a feitura da lei tem igualmente implicações ao nível das rectificações. Estas têm sido infelizmente uma marca negativa da legislação turística dos últimos anos. Podendo até atingir proporções verdadeiramente desconcertantes como a relativa ao Decreto-Lei nº 55/2002, de 11 de Março (alteração da lei dos empreendimentos turísticos), no qual um significativo número de alterações são introduzidas tão somente na republicação. O processo de apreciação parlamentar, outrora designado ratificação, em que a CTP se empenhou fortemente, poderia ter solucionado este e outros problemas normativos. Espero que a solução não passe agora por um novo diploma que se limite a corrigir tais deficiências formais. A emenda seria pior que o soneto e exporia desnecessariamente o flanco à crítica de quem inviabilizou o processo de apreciação parlamentar. Um novo diploma só poderá justificar-se na medida em que contenha uma simplificadora remissão genérica para a legislação da urbanização e da edificação e, principalmente, retome a tipologia de empreendimentos turísticos anteriormente existente, ou seja, retirando do elenco legal os parques de campismo privativos. Só esta última modificação poderá justificar minimamente um novo diploma dos empreendimentos turísticos, atendendo a que a última alteração ainda não perfez um ano.

Importa igualmente melhorar a qualidade dos preâmbulos, pois constituem o primeiro subsídio hermenêutico de um diploma legal. Não foi feliz a experiência dos últimos anos, assistindo-se inclusivamente a meras reproduções de preâmbulos de leis anteriores, surgindo nalguns casos exposições de cariz quase propagandístico, visando criar-se a convicção da originalidade e da importância das soluções legais com objectivos marcadamente políticos. Tais preâmbulos são por via de regra exíguos e com pouco interesse interpretativo.

A vacatio legis, isto é, o período de tempo que decorre entre a publicação da lei e a sua efectiva entrada em vigor de molde a possibilitar o conhecimento em tempo útil dos comandos legais pelos seus destinatários, deverá ser alargada para alguns meses, erradicando-se de vez a frenética fórmula que ultimamente o legislador turístico vem utilizando consistente na entrada em vigor da lei no dia seguinte ao da sua publicação.

Aspecto verdadeiramente crucial na actual conjuntura é o da estabilidade da legislação do turismo, o período mais ou menos prolongado de vigência de determinado corpo normativo. A história recente não se quadra minimamente ao interesse público, com ciclos bienais corporizados em alterações de natureza meramente formal. Importa retomar os bons exemplos de estabilidade normativa como a lei hoteleira ou a disciplina das regiões de turismo ou das agências de viagens, as duas primeiras com ciclos de vigência de aproximadamente dez anos. Será um período porventura longo, atendendo aos hábitos induzidos pela recente prática legislativa, mas parece-me inaceitável a manutenção deste ritmo veloz de alterações legislativas. Um tecido normativo em permanente mutação acarreta elevados custos de consultoria para as empresas e gera um sentimento de perplexidade e hesitação nos investidores estrangeiros.

Pensar a qualidade das leis do turismo, perspectivando o seu futuro, é também evocar aqueles que nos tendo já deixado marcaram de forma indelével através do seu labor profissional o edifício normativo desta actividade económica. Uma palavra em memória do Dr. Asdrubal Calisto, de cuja pena saíram textos normativos de grande qualidade, em minha opinião, o grande legislador e jurista do turismo do período pós 25 de Abril. Com uma dedicação e competência inexcedíveis, consagrando-lhe verdadeiras maratonas pela noite fora, como me relatou numa ocasião o Professor Sérvulo Correia, seu colega de escritório. Outra, de pesar pela recentíssima e prematura morte, aos 49 anos, do meu colega de curso, Dr. António Rua, que se encontrava ligado ao sector da restauração. Foi um aluno brilhante e um profissional respeitado e competente. Muito tinha a dar. O infausto acontecimento interrompe anotação da legislação da restauração que vinha realizando e que constituiria certamente um obra de referência para os profissionais do sector.

Carlos Torres

Advogado

Turisver, Ano XVII – nº 578 – 5 de Outubro de 2002