sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Regiões de Turismo v. Agências Regionais de Turismo:

De um consolidado modelo tripartido em que confluem interesses municipais, governamentais e empresariais para uma indeterminada e constitucionalmente duvidosa proposta de pendor centralista?

1. Um conjunto de preconceitos em torno das regiões de turismo que irrompem ciclicamente

É sabido que um conjunto de preconceitos pode conduzir, em maior ou menor grau, a uma incorrecta percepção e valoração da realidade que nos rodeia.


Uma dessas preconcepções respeita às regiões de turismo, revelando-se amiúde em afirmações que apontam para o seu número excessivo ou da não preparação, cristalização ou ineficiência dos seus dirigentes, maxime dos respectivos presidentes.


Pontos de vista que, não raro, entroncam numa perspectiva algo maniqueísta, na demonização do público e entronização do privado, esquecendo que o sector do turismo a par de uma forte componente empresarial carece, em idêntica proporção, de uma administração pública de qualidade.

Qualquer análise e subsequente decisão política apoiada nestes preconceitos conduziria à extinção de um significativo número de instituições públicas e privadas, pois são conhecidos exemplos de maus deputados, governantes, empresários, dirigentes associativos e profissionais liberais.

Há, pois, em abstracto que indagar se determinado modelo é o mais adequado à prossecução de determinada finalidade e, caso existam distorções em razão da actuação dos titulares dos seus órgãos, introduzir as medidas correctivas que ao caso couberem.

2. Necessidade de ponderar as vantagens e inconvenientes do modelo existente e do proposto

O Governo projecta agora a extinção destas pessoas colectivas de direito público, substituindo-as pela figura das agências regionais de turismo sem, no entanto, se encontrar munido de um estudo que, com a indispensável profundidade, aponte as insuficiências, revele a impossibilidade de as superar em ordem a uma melhor adequação ao interesse público e, como corolário lógico, conclua pela inevitável extinção destas instituições do turismo português que corporizam uma evolução quase secular de participação dos cidadãos e empresas na administração pública do turismo.

Ao mesmo tempo, há também que atentar na consistência e adequação do modelo sucedâneo, porquanto um conjunto de relevantes necessidades colectivas – planos regionais de acção turística, estudos sobre as potencialidades turísticas regionais, definição dos respectivos produtos, promoção interna e colaboração na externa, fomento do artesanato e animação turística, colaboração com o Governo e autarquias em ordem à consecução dos objectivos da política nacional de turismo, apoio e captação de investimento turísticossão realizadas pelas regiões de turismo havendo, assim, que apresentar um modelo que as satisfaça mais eficazmente e que consuma idênticos ou até menores recursos públicos.

Para além disso, a oportunidade e os custos da substituição: indagar se é o momento adequado ao impulso reformista e se os custos associados à substituição do modelo existente pelo modelo projectado são suportáveis e proporcionados, pois há sempre um período de transição entre um a dois anos em que as coisas não funcionam satisfatoriamente.

Partindo-se do previsível sucesso do projectado modelo, estimar a sua duração aproximada. Saber, no fundo, se adianta estar a operar um conjunto de modificações que a curto prazo poderão ser anuladas por outras reformas que com elas conflituam ou as absorvem.

Há também que assegurar o princípio democrático na eleição dos órgãos do novo modelo. E que os diferentes interventores, sejam eles públicos ou privados, têm uma adequada representação porquanto desde as comissões de iniciativas da Iª República que os empresários do sector têm uma intervenção activa na administração pública do turismo, antecipando, de alguma forma, as parcerias público-privadas tão em voga.

Testar igualmente a segurança do novo modelo e a sua compatibilidade com a previsível evolução do quadro jurídico-constitucional da administração pública portuguesa, designadamente no que respeita à intenção do Partido Socialista concretizar o comando constitucional relativo à regionalização na próxima Legislatura.

Last but not the least, aferir da compatibilidade do modelo proposto com os princípios constitucionais conformadores da organização da administração pública.

Uma ponderação serena, objectiva, alinhando desapaixonadamente os prós e os contras do modelo existente e do proposto, procurando alcançar-se um quadro estável e imune tanto quanto possível às mudanças de governação, transparente, que não dependa dos humores ou preferências pessoais dos respectivos titulares ou de afinidades partidárias.

3. Breve caracterização do modelo das agências regionais de turismo

Embora a designação regiões de turismo e agências regionais de turismo possam inculcar alguma semelhança, em termos de conteúdo as figuras são assaz diferentes, mercê da eliminação de uma das traves-mestras do sistema, a exclusiva iniciativa dos municípios interessados (embora não prescindindo da concordância governamental corporizada no decreto-lei que institui a região de turismo) e na consagração de um modelo rígido assente nas NUTS III.

Com efeito, o artº 3º da proposta contrasta fortemente com o princípio da exclusiva iniciativa municipal subjacente às regiões de turismo. Nas agências regionais de turismo a criação e o respectivo âmbito geográfico decorrem do próprio diploma que as institui, ou seja, são criadas ex lege e não ope voluntatis como as regiões de turismo.

Assim, de harmonia com a exclusiva vontade governamental, prescindo-se de qualquer audição dos municípios, são criadas 10 agências regionais de turismo. Para além disso, o critério subjacente à proposta legislativa apresenta algumas dificuldades. Nalguns casos pretende-se criar agências regionais de turismo de âmbito geográfico correspondente a macro-regiões de turismo, noutros mantém-se uma dimensão geográfica muito próxima da actualmente existente sem que se descortine minimamente o fio condutor da opção legislativa.

As NUTS III, a tradição sócio-cultural e turística do território e o PENT são os critérios orientadores para a determinação da competência territorial.


No que respeita às atribuições ocorre um substancial decréscimo comparativamente às regiões de turismo: os planos de acção turística da região e a promoção no mercado interno bem como a colaboração no externo são suprimidas nas agências regionais de turismo. O nóvel organismo é, com efeito, muito parco em atribuições.


Embora no artº 4º se refira que as agências regionais de turismo são compostas pelos municípios integrados no correspondente agrupamento de NUTS III, do artº 9º decorre que outros entes públicos e privados integram a sua assembleia geral.

Sendo as agências regionais de turismo criadas por vontade governamental, a lei socorre-se do conceito de «participação efectiva dos municípios» para expressar a sua integração na pessoa colectiva pública, a qual vai naturalmente depender de deliberação nesse sentido do órgão competente (artº 5º, nº 1).

A forma que se encontrou para estimular o ingresso das autarquias foi o de condicionar o seu acesso a programas públicos de financiamento na área do turismo, constituídos por fundos exclusivamente nacionais, à qualidade de membros das agências regionais de turismo.

O artº 8º enumera os órgãos das agências regionais de turismo: a Assembleia geral, a Direcção e o Fiscal único.

Trata-se, no entanto, de uma composição mínima, como ressalta da expressão «pelo menos» constante do nº 1 do preceito em análise. Que outros órgãos poderão existir para além destes, quem os cria e quais as suas atribuições, são dúvidas que legitimamente assaltam o intérprete mas que o projecto de diploma não fornece a mínima pista interpretativa.

O nº 2 é ainda mais problemático pelo seu alto grau de indeterminação, remetendo para os respectivos estatutos a composição, organização e funcionamento da assembleia geral e do órgão de governo, a direcção. No entanto, enquanto o artº 9º fornece a composição mínima obrigatória da assembleia geral (preceito claramente inspirado no artº 13º da Lei das Regiões de Turismo que fixa a composição da comissão regional) o artº 10º laconicamente proclama que a direcção é eleita pela assembleia geral, não contemplando o número de membros e a duração do mandato.

4. Extinção das zonas de turismo

A proposta governamental envereda também pela extinção das zonas de turismo (artigos 117º e segs. do Código Administrativo) – algo surpreendente coloca-as a par das juntas de turismo que igualmente projecta extinguir não ponderando, uma vez mais, os aspectos de interesse público decorrentes da existência de órgãos de proximidade, agora de âmbito municipal ou infra-muncipal, fortemente especializados e conhecedores da realidade local.

Não posso deixar de expressar uma grande preocupação quanto a estas medidas de grande impacto atenta a experiência recente em que se assistiu à extinção da DGT e do INFTUR, fundamentadas a posteriori com um alegado propósito de concentração no ITP, que todavia não se verifica (atribuições cometidas à DGAE, DREs e ASAE), se projecte agora destruir o plano regional (regiões de turismo) e local (zonas de turismo que se repartem em comissões municipais e juntas de turismo) da administração pública do turismo português.

Os municípios têm de ser líderes do modelo de proximidade e não meros espectadores que aplaudem soluções gizadas muito longe do lugar onde vão ser implementadas e que, por se encontrarem a grande distância, não conseguem a adequada valorização das pequenas mas significativas particularidades locais que são factores distintivos da oferta turística e fortemente potenciadores da competitividade nacional.

Para além, naturalmente, de as preconizadas alterações versando o estatuto das autarquias locais, serem matéria da reserva relativa de competência legislativa do Parlamento (artº 165º, nº 1 al. q) da Constituição).


5. Os princípios constitucionais da autonomia local, descentralização e subsidariedade

Os princípios da autonomia local, descentralização e subsidiariedade são erigidos a princípios fundamentais da organização do Estado pelo artº 6º da Constituição, dele resultando uma orientação base quanto à policracia ou pluralismo de centros de poder.

O princípio da autonomia local, pleonástico como alertam os constitucionalistas, pela singela razão de as autarquias locais pressuporem autonomia, consiste na atribuição de um conjunto de poderes que estas exercem de harmonia com as opções livremente realizadas no respeito do princípio democrático. Encontram-se sujeitas a uma tutela de mera legalidade (artº 242º) e a sua organização, como se referiu acima, faz parte da competência legislativa reservada da Assembleia da República.

O princípio da descentralização, por seu turno, significa restritamente que «na medida do possível e dos meios adequados às matérias, a administração deve organizar-se através de pessoas colectivas distintas do Estado com participação dos cidadãos» (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, pág. 79). Um dos exemplos constitucionalmente previstos são as associações públicas (artigo 267º, números 1 e 4) categoria na qual se integram as regiões de turismo.

Finalmente, o princípio da subsidariedade foi introduzido na revisão constitucional de 1997, tendo como ideias mestras a proximidade do cidadão e de administração autónoma. Como notam Gomes Canotilho e Vital Moreira na sua recente Constituição da República Portuguesa Anotada (I Vol., Coimbra, 2007, pág. 234) este princípio distingue-se dos anteriormente referidos tendo «uma dimensão prática de grande relevância: … a prossecução de interesses próprios das populações das autarquias locais (cfr. artº 235º-2º) cabe, em primeira mão, aos entes autárquicos mais próximos dos cidadãos…»

Como referem estes autores em anotação ao actual artº 237º «o princípio da descentralização aponta para o princípio da subsidiariedade, devendo a lei reservar para os órgãos públicos centrais apenas aquelas matérias que as autarquias não estão em condições de prosseguir» (página 887 da 3ª edição, Coimbra, 1993).


Finalmente, para além da competência geral e plena para a prossecução de interesses próprios, aqueles prestigiados constitucionalistas põem em destaque, o que não é despiciendo para a matéria que nos ocupa, que a regra é a descentralização e a excepção a concentração.

6. Conclusão

No quadro actual, afigura-se recomendável um modelo de consenso que conduza a uma substancial e realista redução em aproximadamente quarenta por cento do número de regiões de turismo existentes, garantindo o essencial das suas reconhecidas vantagens mas não sacrificando o modelo de proximidade que o turismo necessita em absoluto. Como constata Hall, na sua obra de referência publicada em 2003, «wine, food and tourism are all products that are differentiated on the basis of regional identity».

Actuação interessada e proactiva dos municípios que constituem a sua força impulsionadora e dominante, mas que garantam a intervenção do sector privado (empreendimentos turísticos, estabelecimentos de restauração e bebidas, agências de viagens, empresas de animação) não só na respectiva assembleia mas também no órgão de governo. Haverá alguma arquitectura jurídica tão flexível e ajustada à evolução do sector como a das regiões de turismo que permite um empresário do sector possa ascender à sua presidência e simultaneamente garante a adstrição das verbas a determinadas finalidades e apertado controlo dos dinheiros públicos?

A consensualidade do modelo de administração do turismo é um dos seus importantes factores de sucesso. Mudanças gizadas com a colaboração dos destinatários surtem mais efeito do que as que lhe são impostas, suscitando protestos e insatisfação tanto mais legítimos em razão da indeterminação e falta de fundamentação da solução proposta. In casu, será obtido pelo mecanismo da fusão de regiões de turismo contíguas para a qual é indispensável a cumplicidade entre os municípios e o Governo.

Não destruamos, pois, por simples capricho ou excesso de tónus governativo, as potencialidades destes entes regionais de turismo até que serenamente consigamos construir um credível e constitucionalmente compatível modelo alternativo. As originais traves mestras das regiões de turismo são um bem que cumpre preservar pois tratando-se de um embrião de regionalização poderá inclusivamente constituir um interessante projecto piloto caso se reforcem as suas atribuições.

Parece clara a orientação da Constituição quanto ao caminho a percorrer: os problemas turísticos que respeitem exclusiva ou predominantemente à respectiva região devem ser resolvidos no seu interior sem recurso ao Governo central, embora observando, como não pode deixar de ser, o quadro das políticas e orientações definida a nível nacional. Em nome do aumento da eficácia e eficiência do sistema de administração pública mercê da menor pressão sobre os órgãos centrais que, assim, ficam mais libertos para as questões de âmbito nacional.

Carlos Torres
Advogado
Artigo publicado em TURISVER
(Ano XXII – nº 673 – 5 de Fevereiro de 2007)