segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

O Caso Nobeltours à Luz de uma das Liberdades Fundamentais da União Europeia


O artº 8º da LAVT permite que agências de viagens e operadores turísticos doutro Estado membro exerçam a sua actividade em Portugal cumprindo apenas algumas formalidades.

Ainda que o operador doutro Estado membro não disponha de filial ou sucursal em Portugal, um conjunto de regras comuns aos Estados-membros da União Europeia decorrentes da Directiva nº 90/314, há muito implementadas nas legislações nacionais, possibilitam a comercialização de pacotes turísticos no mercado interno.

Em conformidade, nenhuns entraves podem colocar-se à livre comercialização pelas agências de viagens nacionais de pacotes turísticos constantes de um programa ou brochura de um operador turístico espanhol, recebendo aquelas como contrapartida uma comissão, a menos que se demonstre que Portugal estabeleceu nesse âmbito disposições mais rigorosas de protecção dos consumidores que as vigentes em Espanha.

1) Introdução

Embora recente, o caso Nobeltours ameaça tomar proporções indesejáveis pelo que expresso desde já a minha opinião, não em razão do crescente conflito entre uma das mais antigas e prestigiadas associações empresariais do turismo e um operador turístico espanhol, o qual deve naturalmente confinar-se às partes envolvidas, mas pela suspeição e preocupação crescentes que um conjunto de agências de viagens vem suscitando quanto à comercialização de serviços (viagens organizadas comummente designadas por pacotes turísticos) oferecidos por operadores turísticos doutros Estados membros, sobretudo espanhóis.

Em 15 de Novembro de 2007, a APAVT difundiu pelas agências de viagens associadas uma circular informando que tinha conhecimento duma «brochura, publicada pela empresa de direito espanhol Nobeltours, constando das condições gerais que essa empresa possui um alvará espanhol e que as condições estão sujeitas à lei espanhola. Tal, constitui uma violação flagrante da legislação que regula a actividade das agências de viagens e constitui as agências retalhistas que publicitem ou disponibilizem ao público esta brochura na prática de uma contra-ordenação, punida com coima que varia entre 15.000 € e 30.000 €».

Concluía instando os «associados a não publicitarem, nem comercializarem os produtos constantes desta brochura enquanto Nobeltours».

Pelos limites mínimo e máximo da coima a posição associativa refere-se ao nº 2 do artº 57º da Lei das Agências de Viagens e Turismo (LAVT), o qual sanciona a violação do princípio da exclusividade (apenas as agências de viagens podem exercer um conjunto de actividades próprias enumeradas taxativamente na lei designadamente a organização e venda de viagens turísticas nas quais se incluem os pacotes turísticos) e não prestação de garantias ou seja da caução e do seguro de responsabilidade civil.

O significativo impacte da posição associativa – ao que julgo inédita – foi amplificado pelos diferentes jornais on-line do sector e as dúvidas dos agentes de viagens, associados ou não, alastraram rapidamente a outras brochuras de operadores turísticos estrangeiros, tendo recebido um inusitado número pedidos de esclarecimento questionando se deveriam ou não seguir a recomendação da APAVT.

Um conceito fundamental para a problemática deste escrito é o de mercado interno, referido no nº 2 do artº 14º do Tratado de Roma, o qual compreende um espaço sem fronteiras internas no qual é assegurada a livre circulação de serviços.

Analisarei sucessivamente duas liberdades fundamentais nesse âmbito: a do estabelecimento e da prestação de serviços.

2) A liberdade de estabelecimento

O artº 43º do Tratado de Roma interdita as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado membro no território de outro Estado membro, comando que abrange a constituição de agências, sucursais ou filiais.

Nessa linha o artº 8º da LAVT disciplina a abertura de sucursais em Portugal de agências estabelecidas noutro Estado membro ocorrendo um substancial aligeiramento de formalidades.

Ao abrigo daquela norma algumas agências de viagens (agencias de viajes minoristas/mayoristas-minoristas) e operadores turísticos (agencias mayoristas) espanhóis exercem a sua actividade Portugal sem necessidade de constituir uma nova empresa, bastando para o efeito demonstrar que se encontram legalmente constituídas no seu país, fazerem prova das garantias e a declaração de idoneidade dos gerentes ou administradores.

Ou seja, apesar do alvará ou seja o documento que titula a licença de agência de viagens ter sido emitida por Espanha ou por qualquer outro Estado membro podem exercer a sua actividade em Portugal.

A matéria do direito de estabelecimento e da liberdade de prestação de serviços no mercado interno da União Europeia foi, há cerca de um ano, disciplinada pela Directiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de Dezembro de 2006 in JOCE L 376/36 de 27.12.2006, mais conhecida pela Directiva dos Serviços que suscitou uma grande reflexão no interior da União Europeia.

As regras da liberdade de estabelecimento constam do Capítulo III, artigo 9º e seguintes, devendo as normas daquele diploma comunitário ser objecto de transposição para a legislação dos Estados membros até final de 2009 (artº 44º) pelo que o artº 8º da LAVT não deixará, a seu tempo, de ser objecto de uma análise de compatibilidade com tal normação.

É, assim, suficiente o cumprimento dos requisitos do artº 8º da LAVT pelos agências de viagens e operadores turísticos do país vizinho que desejem exercer a sua actividade em Portugal, apesar de disporem de um alvará espanhol.

O facto de as condições de algumas brochuras remeterem para a lei espanhola será tratado conjuntamente no ponto seguinte.

3) A liberdade de prestação de serviços

Pode, no entanto, o operador turístico doutro Estado membro não pretender estabelecer-se em Portugal mas tão somente oferecer os seus serviços disponibilizando para o efeito nas agências de viagens as respectivas brochuras ou programas pagando aquelas uma comissão.

O artº 49º do Tratado de Roma determina que as restrições à livre prestação de serviços na Comunidade serão proibidas relativamente aos nacionais dos Estados membros estabelecidos num Estado da Comunidade que não seja o do destinatário da prestação.

Independentemente das implicações da denominada Directiva dos Serviços acima referida, a matéria foi há muito disciplinada pela Directiva (90/314/CEE) do Conselho, de 13 de Junho de 1990 relativa às viagens organizadas, férias organizadas e circuitos organizados.

Ou seja no que respeita aos pacotes turísticos e tendo em conta que «um dos principais objectivos da Comunidade é a concretização do mercado interno de que o sector do turismo é um elemento essencial» (1º considerando) e que as práticas nacionais divergiam «consideravelmente, resultando desse facto obstáculos à livre prestação de serviços no que respeita às viagens organizadas e distorções de concorrência entre os operadores estabelecidos nos diferentes Estados-membros» (2º considerando) estabeleceram-se pela Directiva 90/314/CEE um conjunto de regras comuns de forma a que os «operadores económicos estabelecidos num Estado-membro prestem os seus serviços noutros Estados-membros e que os consumidores da Comunidade beneficiem de condições comparáveis independentemente do Estado-membro em que adquirem a viagem organizada» (3º considerando).

O objectivo dessas regras comuns é claramente explicitado no 7º considerando da Directiva nº 90/314/CEE: «o turismo desempenha um papel de importância crescente na economia dos Estados-membros; que o sistema de viagens organizadas constitui uma parte essencial do turismo; que o sector das viagens organizadas nos Estados-membros seria incentivado para um maior crescimento e produtividade se fosse adoptado um mínimo de regras comuns, a fim de lhe conferiram uma dimensão comunitária; que esse facto não só beneficiaria os cidadãos da Comunidade que adquirem viagens organizadas elaboradas com base em tais regras mas atrairia igualmente turistas de países terceiros que procuram as vantagens da existência de normas garantidas nas viagens organizadas».

Tendo já sido há muito operada a transposição do acervo de regras comuns aos Estados-membros da União Europeia preconizadas pela Directiva nº 90/314, designadamente em Portugal (Decreto-Lei nº 198/93, de 27 de Maio) e Espanha (Ley 21/1995, de 6 de Julio in BOE nº 161, de 7 Julio) nenhuns entraves podem existir à livre comercialização de viagens organizadas constantes de um programa ou brochura de um operador turístico espanhol em Portugal.

A circunstância de a brochura da Nobeltours ou de qualquer outro operador doutro Estado membro remeter para a lei espanhola ou outra lei nacional não significa à partida qualquer diminuição de garantias por parte dos consumidores portugueses a menos que se demonstre que o Estado português estabeleceu nesse âmbito disposições mais rigorosas. Ou seja, que tal brochura não cumpre os requisitos mais exigentes estabelecidos pelo Estado português no Decreto-Lei nº 209/97, de 13 de Agosto.

Parece-me, pois, que não se pode recomendar a retirada de uma brochura de um operador turístico de um Estado membro, neste caso espanhol, pela simples circunstância deste possuir um alvará estrangeiro ou que remete para a sua lei a qual foi há muito objecto da incorporação de um conjunto de regras relativas à comercialização de pacotes turísticos constantes da Directiva 90/314/CEE, comuns aos Estados-membros da União Europeia.

É pois à luz de das liberdades fundamentais da União Europeia – do estabelecimento e da prestação de serviços – e dos direitos dos consumidores portugueses que esta questão e outras conexas devem ser analisadas. Sem surpresas, atempadamente e com a indispensável troca prévia de pontos de vista, nunca com este ambiente de perturbação do mercado.

Carlos Torres
Advogado

In Publituris nº 1001 – 30 de Novembro de 2007