quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Sobre a ambição de um Código do Turismo


1) Introdução

Defendi recentemente a necessidade de um Código do Turismo que sistematize, unifique e dê um rumo de coerência ao elevado número de diplomas legais que disciplinam um sector da actividade económica tão importante para o futuro do País.

Cumpre conhecer um pouco melhor esta realidade da codificação. Vejamos o que significa a expressão do ponto de vista técnico, qual é a noção de código. E também as realidades que dele se aproximam mas que com ele não se confundem.

2) Noção de Código

Em sentido técnico, código respeita à organização sistemática das normas jurídicas aplicáveis a uma determinada área de regulação jurídica, sendo que esta pode ou não encontrar-se autonomizada como ramo do Direito. Agrupam-se normas jurídicas que, do ponto de vista material, têm uma ligação entre si, estabelecendo-se com carácter tendencialmente exaustivo uma disciplina sintética e unificadora.

Constitui, assim, a disciplina fundamental de certa matéria ou ramo do Direito elaborada de forma científico-sistemática e unitária.

Etimologicamente, código tem a sua origem em codex, expressão que no Direito Romano designava uma colecção ou compilação de leis. É, porém, outro o sentido moderno que resulta do movimento codificador de finais do século XVIII, no qual se destaca o célebre e ainda vigente Código de Napoleão.

Com efeito, o Código Civil francês, publicado em 1804, ainda vigora nos nossos dias, não se falando por ora na sua substituição. Com intervenção pessoal de Napoleão Bonaparte na sua feitura, obedece à trilogia racionalista e prática dos três ss «sistemático, scientífico e sintético», que o Direito fosse acessível aos cidadãos. É de uma leitura fácil e apelativa, mesmo para os não juristas. Numa curiosa carta de Stendhal a Balzac, o primeiro confessava que todas as manhãs lia duas ou três páginas do Code, leitura que o ajudava a tornar-se o mais natural possível no seu estilo literário

3) França: fase final do processo de adopção de um Código do Turismo

A heterogeneidade da legislação do turismo e a necessidade de melhorar o acesso dos cidadãos à normação do turismo motivou que, em Outubro de 2000, os responsáveis políticos franceses tivessem tomado a decisão de elaborar um Código do Turismo. Pesou nessa decisão a importância do turismo no conjunto das actividades económicas.

Em Outubro de 2001 o grupo de trabalho submeteu um projecto do respectivo plano ao organismo que supervisiona a codificação, tendo-se concluído os trabalhos da parte legislativa do código em Maio de 2003, envolvendo numerosas concertações interministeriais.

Através da Ordonnance nº 2004-1391, de 20 de Dezembro de 2004, foi finalmente publicada a disciplina base do Código, esperando-se que até ao final de 2005 se encontre concluída a parte regulamentar.

4) Realidades próximas da codificação

Existem outras realidades normativas que precederam ou podem coexistir com os códigos, mas que com ele não se confundem, porquanto lhe faltam alguns atributos. A saber:

1) Compilação ou colectânea: consiste numa mera reprodução de leis e costumes pertencentes a diferentes ramos do Direito de harmonia com um critério cronológico e/ou material (fundamentalmente empíricos enquanto num código encontramos um plano sistemático longamente meditado e amadurecido pela ciência jurídica). A sua elaboração não obedecia a qualquer perspectiva de unificação ou de sistematização. Constituem exemplos para além da Lei das XII Tábuas ou as Ordenações do Reino, o Codex Gregorianus, o Codex Theodosianus e o Codex de Justiniano.
2) Consolidação: texto cientificamente ordenado e com carácter oficial, representando um meio termo entre a compilação e o código, reunindo-se ordenadamente num texto normativo único as leis que vigoram num determinado ramo do Direito. Difere do código pela falta de carácter inovador, porquanto embora consista num texto unitário cientificamente organizado, limita-se a ordenar sistematicamente as regras pré-existentes. Podem apontar-se como exemplos a Consolidação das Leis Civis brasileiras, publicada em 1858 e, mais recentemente, no âmbito do Direito Comunitário as sucessivas modificações de regulamentos e directivas têm suscitado complexos problemas de identificação do Direito vigente, os quais têm sido obviados mediante a publicação da versão consolidada dos textos.
3) Estatuto: lei que regula determinada matéria, v.g. actividade, carreira ou profissão, de uma forma unitária e sistemática mas sem a dignidade, a abrangência reguladora e a estabilidade que caracterizam um código. Encontramos exemplos destes conjuntos de normas materialmente homogéneo no Estatuto dos Benefícios Fiscais, no Estatuto da Ordem dos Advogados, no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e no Estatuto dos Magistrados Judiciais. Sobre as várias vicissitudes do Estatuto do Turismo consultar Sérgio Palma Brito, Notas sobre a Evolução do Viajar e a Formação do Turismo, Lisboa, 2003, Volume II, em especial as págs. 1031 e segs.
4) Lei orgânica: à semelhança do estatuto, procede à organização e regulação de forma sistemática e unitária de uma determinada realidade, neste caso o funcionamento de um serviço. Exemplos: Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, do Ministério Público e da Direcção-Geral do Turismo.
5) Microcódigo: encontramos as características de um código mas a realidade que disciplina é mais incipiente não cobrindo todo um ramo do Direito. É o caso do Regime do Arrendamento Urbano (RAU).

5) Vantagens e inconvenientes da codificação

Como qualquer realidade, a codificação comporta vantagens e desvantagens.

Quanto às primeiras, ou seja, às vantagens de um código, podemos alinhar os seguintes argumentos:

1) Facilita consideravelmente o conhecimento do Direito aplicável, tornando mais segura a sua aplicação;
2) Encerra uma reflexão profunda e fundamentada numa perspectiva de sistematização e de soluções unitárias de molde a formar um todo coerente, evitando incongruências entre as normas jurídicas;
3) A sua estrutura permite inferir os grandes princípios os quais articulados com as respectivas normas constituem as suas traves-mestras;
4) Facilita a integração mediante o recurso à analogia;
5) Permite a unificação do Direito quer no plano interno quer no plano internacional.

São apontadas as seguintes desvantagens:

1) Rigidez da solução pouco atreita a modificações do seu normativo;
2) O intérprete adopta em regra uma postura interpretativa fundamentalmente exegética, pouco criativa, vergando-se à autoridade destes monumentos legislativos.
3) A função unificadora (apontada como um dos aspectos positivos da codificação) pode afinal revelar-se desvantajosa face a realidades económicas, sociais e culturais assaz distintas.

Entende-se, no entanto, que as vantagens superam largamente os inconvenientes porquanto um código «postula adensação e completude, complementação e acabamento» podendo «até dizer-se que a codificação (a recondução do material normativo a fórmulas sintéticas dotadas de virtualidades generativas e orientadoras) constitui o resultado a que tende todo o esforço da ciência jurídica» (J. Baptista Machado).

6) Lei de Bases do Turismo

A elaboração de uma lei de bases do turismo foi sucessiva e destacadamente anunciada no programa eleitoral do Partido Socialista e no próprio Programa do Governo.

Uma lei de bases do turismo estabelece os princípios vectores, ou as bases gerais, do regime jurídico do sector do turismo, ficando depois a cargo do Governo o desenvolvimento desses princípios ou bases.

Existem leis de bases que são do domínio da reserva absoluta da Assembleia da República (caso das Forças Armadas ou do sistema de ensino) outras da reserva relativa, isto é, susceptíveis de serem legisladas directamente por aquele órgão de soberania ou pelo Governo mediante autorização do Parlamento (casos mais numerosos, designadamente os da segurança social, serviço nacional de saúde, protecção da natureza, política agrícola, ordenamento do território e urbanismo).

Existem, no entanto, matérias como sucede no caso de uma lei de bases do turismo, em que tanto pode legislar a Assembleia da República como o Governo, ou seja, trata-se de um domínio de competência legislativa concorrencial entre os dois órgãos de soberania.

Um código é uma lei em sentido material, situando-se na hierarquia das leis com a força da que o aprova ou na qual está contido, ou seja, de uma lei ou de um decreto-lei.

7) O conteúdo de uma Lei de Bases do Turismo poderá converter-se na parte geral do Código do Turismo

Se o Governo optar pelo Código do Turismo, o conteúdo material correspondente a uma lei de bases do turismo poderá constituir a parte geral daquela codificação dada a patente coincidência de matérias.

Afigura-se-me, pois, existir uma clara sobreposição ou identidade de matérias entre o que deverá ser uma parte geral de um Código do Turismo e uma Lei de Bases do Turismo.

Do ponto de vista formal e sobretudo do material, a opção seria inatacável porquanto o objectivo programático da elaboração de uma lei de bases estaria plenamente conseguido. Porventura, até com um maior grau de efectividade em termos de execução das respectivas normas e de um maior conhecimento por parte dos seus destinatários.

8) Qualquer reforma legislativa avulsa deve ser precedida da elaboração da lei de bases

Cumpre agora analisar a hipótese de o Governo, apesar das invulgares condições políticas e técnicas existentes permitirem a criação de uma codificação do turismo, que constitua não só um poderoso tonificador interno mas também uma referência para os países de língua portuguesa que a nossa legislação do turismo tem inspirado (um bem precioso que não temos valorizado devidamente), venha a optar pelo remendo legislativo, ou seja, umas tantas mexidas formais na Lei dos Empreendimentos Turísticos outras nos seus regulamentos, porventura uma nova lei das agências de viagens e já está.

A trilhar-se esta hipótese, a mais elementar lógica e uma rudimentar legística parecem impor que primeiro se inicie o processo legislativo de uma lei de bases do turismo e só depois a reforma da legislação dos empreendimentos turísticos, agências de viagens etc. Doutro modo, aplicar-se-á a esta construção legislativa o conhecido adágio popular de se iniciar a construção da casa pelo telhado.

Certamente que a lei de bases do turismo imporá algumas modificações do tecido normativo actualmente existente, pelo que a legislação do turismo sofreria duas modificações, a mini-reforma que se encontra anunciada (desconhecem-se as linhas mestras que a norteiam) e outra ulterior para adaptar o seu conteúdo ao da lei de bases do turismo entretanto publicada.

Se o Governo vier a embrenhar-se nas minudências da LET sem uma prévia orientação das respectivas linhas mestras escorada num travejamento jurídico básico constituído por uma lei de bases do turismo, certamente mergulhará na tradicional voragem das casuísticas reformas legislativas, politicamente estéreis e de insucesso altamente previsível, no qual já foi fértil a anterior Legislatura.

Uma parte do sector empresarial vai exigir, como sempre, a eliminação da burocracia, o aligeiramento das intoleráveis formalidades e requisitos do licenciamento de empreendimentos turísticos, brandindo rejuvenescida a falácia de que os empresários sabem melhor do que ninguém o que convém ao turismo e que jamais beliscariam o ambiente porque isso se volta contra os seus próprios interesses.

No final do longo e desgastante processo, o anteprojecto legislativo decepciona gregos e troianos, fingem-se solidariedades de pontos de vista e atribuem-se as culpas para os fundamentalistas do ambiente e do ordenamento do território. Asseveram um total conhecimento e domínio do que é preciso fazer para melhorar a nossa performance turística, mas falta peso político no turismo para conseguir modificar o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação no qual se concentram os aspectos mais importantes a rever, rematam, desculpabilizadores, no epílogo de mais uma colectiva frustração legiferante.

9) Um mínimo de ambição política para a legislação do turismo

Num quadro de estabilidade política decorrente de uma confortável maioria parlamentar, porventura irrepetível nas próximas Legislaturas, é, do meu ponto de vista, confrangedora a falta de ambição política e de visão do futuro reveladas numa mini-reforma.

Para além dos aspectos já referidos no anterior artigo sobre esta matéria, a inserção no código da denominada contratualística do turismo, designadamente os contratos de allotment, alojamento, animação, assistência turística, campismo, criação e distribuição de pacotes turísticos, cruzeiro turístico, restauração, transporte turístico entre tantos outros, introduzindo regras claras, seguras e precisas no dia a dia da actividade, poderiam colocar Portugal num lugar de destaque no panorama mundial da legislação do turismo.

Um mínimo de ambição, meus senhores!

Carlos Torres
Advogado
Artigo publicado em TURISVER
(Ano XX – nº 643 – 20 de Setembro de 2005)