quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Pousadas: Um Património Nacional


Os nossos antepassados tiveram a ousadia de criar as pousadas em plena II Guerra Mundial, apesar de toda a espécie de dificuldades então existentes. Tão valiosa e prestigiante herança colectiva, fruto de um prolongado investimento público deve ser honrada, mantendo-se as pousadas como um bem colectivo, resistindo, assim, à imediatista voragem da cobertura do défice. O modelo de elevada qualidade que as pousadas corporizam, sedimentado ao longo de seis décadas, percursor e indutor do desenvolvimento do turismo português, conserva um elevado potencial e está longe de se encontrar esgotado, como decorre do elevadíssimo interesse que está a despertar num conjunto alargado e significativo de grupos privados. Tal património deverá manter-se na titularidade pública, sem embargo de a gestão ou exploração de cada uma das suas unidades poder ser cometida a entidades privadas, como sucede desde a sua fundação e o actual quadro normativo permite através de instrumentos jurídicos como o contrato de franquia ou de cessão da exploração.

1. Introdução

O projectado ingresso, numa proporção assinalável, de capitais privados na Enatur – Empresa Nacional de Turismo, S.A., sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos, que gere as Pousadas de Portugal, convida a uma primeira reflexão da minha parte, a qual não tem carácter exaustivo mercê da complexidade da matéria e multiplicidade de questões associadas.

O fortíssimo interesse, perfeitamente legítimo, de alguns grupos privados, com e sem vocação turística, num negócio aparentemente lucrativo, tem contribuído para um efeito de alguma anestesia na opinião pública. Daí que, na sequência do artigo publicado no «Expresso», do ex-Secretário de Estado do Turismo, Vítor Neto, o qual teve o mérito de trazer para a discussão pública esta importante temática, importe incentivar e contribuir para uma reflexão serena, aprofundada e tanto quanto possível despartidarizada do futuro de uma das instituições mais importantes do turismo português. Das poucas que conservam a força dos períodos áureos, atento, v.g., o progressivo esvaziamento de competências da Direcção-Geral do Turismo, depreciação institucional que culminou na recente perda de autonomia financeira e em reiteradas tentativas de descaracterização ou mesmo erradicação do avançado modelo de regionalismo turístico existente, atrofiado pela ausência de independência financeira.

2. Um continuado investimento público com seis décadas

As pousadas, sem embargo naturalmente de um ou outro aspecto que pode e deve ser melhorado, constituem uma realidade que apraz a generalidade dos portugueses, que as encaram como um bem colectivo que prestigia fortemente Portugal, mercê de um investimento público realizado ao longo de mais de seis decénios.

Empreendendo um breve excurso histórico, a génese das pousadas remonta aos primórdios da década de trinta. Os investimentos privados na hotelaria revelavam-se então exíguos, existindo poucas unidades, em regra de baixa qualidade, incipientes face às crescentes necessidades do turismo internacional.

A experiência dos «paradores» espanhóis que alojaram os visitantes da Exposição Ibero-Americana de Sevilha, em 1929, apontou a linha de investimento público a seguir entre nós e que será protagonizada por António Ferro, director do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), organismo que em 1944 seria transformado no Secretariado Nacional de Informação e Cultura Popular (o conhecido SNI). Volvidos dez anos sobre a exposição de Sevilha, no dealbar do segundo conflito mundial, é oficialmente anunciada a construção das primeiras cinco pousadas, que o ministro das Obras Públicas, Duarte Pacheco, inclui no Plano dos Centenários e cuja edificação, numa atitude plena de significado, acompanha pessoalmente. Concluída a sua construção foram entregues à tutela do SPN, que as colocou sob o regime de concessão a particulares.

3. O quadro jurídico actual

Feita esta pequena nota quanto à origem das pousadas, cumpre analisá-las do ponto de vista normativo, aludindo ao quadro jurídico actualmente vigente.

Os estabelecimentos hoteleiros, que encabeçam a tipologia de empreendimentos turísticos, classificam-se em seis grupos: hotéis, hotéis-apartamentos (aparthotéis), pensões, estalagens, móteis, e, por fim, as pousadas (artº 2º do Decreto-Regulamentar nº 36/97, de 25 de Setembro, abreviadamente RegEH).

Por seu turno, as pousadas distinguem-se dos demais estabelecimentos hoteleiros por três características fundamentais. Em primeiro lugar, encontram-se instaladas em edifícios classificados como monumentos nacionais ou em edifícios classificados de interesse regional ou municipal, ou, ainda, em edifícios representativos de determinada época (artº 43º do RegEH). Em segundo lugar, a sua exploração é levada a cabo pela ENATUR, S.A. que pode enveredar pela exploração directa das pousadas ou concedê-la a terceiros mediante a celebração de contratos de franquia ou de cessão de exploração, sendo que a minuta de tais contratos é aprovada pela entidade tutelar (artº 45º do RegEH). Por último, o seu carácter subsidiário, exploratório ou percursor face à iniciativa privada de alojamento turístico, isto é, situarem-se fora de zonas turísticas nas quais exista suficiente apoio hoteleiro.

4. Prossecução de dois importantes interesses públicos: recuperação e preservação do património e o impulso de desenvolvimento de zonas com potencial turístico

Encontramos nas pousadas a prossecução de dois relevantes interesses públicos: conservação do património e a implantação de estabelecimentos hoteleiros com características arquitectónicas sui generis – a «hotelaria de fisionomia nacional» que inspirou António Ferro –, em zonas com potencial turístico mas até então carenciadas de alojamento em razão do desinteresse da iniciativa privada.

Como é que se compatibiliza o ingresso de capitais privados na Enatur com estas duas funções de natureza eminentemente pública? No que tange à função conservatória, facilmente se intui que o investimento privado visa a máxima rentabilização dos capitais investidos e não a recuperação ou conservação de património público. Esta será uma função meramente eventual do investimento privado designadamente ao nível do mecenato, mas não uma aplicação característica ou usual de capitais privados. Perspectivando-se, assim, à partida duas tendências conflituantes no interior da pessoa colectiva susceptíveis de comprometer a normal prossecução dos seus fins. No que respeita à segunda ela é ainda mais clara: as pousadas têm, desde a sua origem, impulsionado zonas com potencial turístico as quais não haviam despertado até então o interesse da iniciativa privada, mas que se tornaram ulteriormente polarizadoras e indutoras do investimento privado.

5. Intenção recente em desconformidade com o Programa do Governo

A intenção de privatização é deveras surpreendente. Que me recorde nunca o ministro sombra do PSD para o turismo ou qualquer outro dirigente manifestaram na anterior Legislatura tal intenção. O mesmo sucedendo do lado do CDS-PP. Omissão que se estendeu à campanha eleitoral.

O próprio Programa do XV Governo Constitucional, surpreendentemente pormenorizado no domínio nas pousadas, não alude a qualquer intenção de privatização, como flui do seguinte excerto:

«... pelo reajustamento operacional da ENATUR – Pousadas de Portugal, através da concentração da sua actividade nas “Históricas” e no estabelecimento de parcerias com o sector empresarial privado, susceptível de gerar sinergias capazes de dar expressão e dimensão ao nosso turismo cultural;».

O Programa do Governo constitui, porém, um acto político «stricto sensu», não sendo directamente aplicável nas situações ou relações jurídicas que versa. A sanção da desconformidade dos actos do Governo com o respectivo programa é meramente política: uma eventual moção de censura que tenha por base a inexecução do programa.

A forma como a questão foi lançada na opinião pública também não abona em favor do Governo. A primeira divulgação ocorreu através de uma notícia no «Expresso» sobre a privatização, com um conhecido e respeitado ex-governante do turismo a assumir, desde logo, o interesse no negócio em nome da sua empresa. O Governo surge a reboque de uma notícia, quando ao invés deveria ter preparado a atenção dos portugueses para tão importante matéria, explicando-a convenientemente, atenta a sua novidade, e estimulando uma discussão alargada na sociedade civil. Nada disto foi feito, apresentando-se a privatização como um dado adquirido, uma questão menor, desvalorizando-a. Ao ponto de o Sr. Ministro da Economia referir que não lhe «consta que o Estado seja um bom hoteleiro». Pois bem, o denominado modelo de hotelaria do Estado de que as pousadas constituem, entre nós, o máximo expoente tiveram no desenvolvimento do turismo português uma grande importância. Um papel muito meritório que poderá e deverá continuar a desenvolver-se no pressuposto de que se respeite, como tem acontecido, o carácter subsidiário ou exploratório de tal intervenção.

6. Conclusão

Como se referiu, os nossos antepassados tiveram a ousadia de criar as pousadas em plena II Guerra Mundial – em 19 de Abril de 1942 é inaugurada a primeira pousada do SNI em Elvas, à qual se seguiriam, nesse mesmo ano, as do Marão e Serém; em 1943 Alfeizerão; em 1944 S. Brás de Alportel; e, no culminar do conflito mundial, Santiago do Cacém em 1945 – apesar de toda a espécie de dificuldades então existentes v.g. falta de combustíveis e racionamento de víveres. Julgo que tão valiosa e prestigiante herança colectiva, fruto de um prolongado investimento público, deve ser honrada, mantendo-se as pousadas como um bem colectivo, resistindo, assim, à imediatista voragem da cobertura do défice.

Em Abril de 1942, na referida inauguração da primeira pousada, fustigado pelas críticas de inoportunidade e exagero de tal investimento público, António Ferro proclamava: «...não nos podemos entregar ao fatalismo da Guerra, desculpa fácil para todos os desânimos, para todos os braços caídos...».

Faço votos para que em Abril próximo, volvidos sessenta e um anos, aquando da entrega do relatório da privatização, idêntica energia governativa inspire o nosso Ministro da Economia, Dr. Carlos Tavares, que este levante os braços insurgindo-se contra o fatalismo do défice das contas públicas e com o ânimo de quem prospectiva superiormente os interesses nacionais, conserve as pousadas como um património de todos os portugueses.

Carlos Torres
Advogado
Turisver, Ano XVIII – nº 586 – 20 de Fevereiro de 2003