sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

A nova Lei da Restauração e Bebidas – Os primeiros comentários


Há muito que tais alterações poderiam ter sido implementadas, sem necessidade de uma nova lei, modificando-se a existente, tal como sucedeu no domínio dos empreendimentos turísticos. Paradoxalmente são
introduzidas quando está em curso uma reforma do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação – o licenciamento da construção e o da utilização constituem matérias nucleares – o que, como facilmente se intui, motivará poucos meses após a sua publicação, alterações à Lei da Restauração e Bebidas.

1) Introdução. Novo regime jurídico que substitui a disciplina vigente

Foi recentemente publicado no Diário da República nº 116 (I Série), o Decreto-Lei nº 234/2007, de 19 de Junho, que aprova o novo regime jurídico da instalação e do funcionamento dos estabelecimentos de restauração ou de bebidas (abreviadamente LRB).

Trata-se de um novo diploma legal e não de uma modificação da lei existente, como tem sucedido noutras intervenções legislativas realizadas pelo actual Governo, designadamente no domínio dos empreendimentos turísticos e turismo no espaço rural. É, assim, substituído, pela primeira vez, um dos pilares da legislação do turismo publicada em 1997, que sucedeu à conhecida Lei Hoteleira em que os estabelecimentos de restauração e bebidas eram designados por estabelecimentos similares.

2) As fases de instalação, modificação, exploração e funcionamento

No artº 1º, a técnica legislativa não se revela particularmente feliz. Em lugar da actual distinção dualista, simples e perfeitamente delimitada, entre instalação (que abrange aspectos de índole urbanística relativos às fases de informação prévia, licenciamento da construção e licenciamento da utilização) e funcionamento, surgem-nos agora quatro: instalação (acção desenvolvida em ordem à abertura de um estabelecimento), modificação (alteração abrangendo aspectos físicos como a redução ou a ampliação de instalações mas também jurídicos como a modificação da entidade exploradora), exploração (não se descortina o motivo da entidade exploradora ter sido integrada na fase anterior) e funcionamento. O legislador delimita os dois primeiros conceitos mas, inexplicavelmente, não precisa os demais.

3) Definições dos tipos de estabelecimentos

No artº 2º – que mantém a tipologia actual – surge a definição de estabelecimentos de restauração (carácter remunerado, no próprio estabelecimento ou para fora, fornecimento de alimentação e bebidas) e de bebidas (idem, bebidas e cafetaria), podendo ambos dispor de salas ou espaços destinados a dança, transita sem alterações da lei vigente. Até determinada potência contratada (50 Kva) os estabelecimentos que disponham de instalações destinadas ao fabrico próprio de pastelaria, panificação e gelados – ou que vendam produtos alimentares – ficam sujeitos exclusivamente ao regime da instalação da LRB. Ultrapassada aquela potência, aplica-se o regime do licenciamento da actividade industrial.

4) A exclusão do licenciamento do catering, banquetes ou outras actividades sem carácter regular

No nº 1 do artº 3º surge uma questionável disposição que exclui do licenciamento da actividade de restauração e bebidas o catering, banquetes ou outras actividades sem carácter regular, como tal se entendendo as que não atinjam 10 eventos anuais nesses espaços. Se realizarem 10 eventos terão de obter a licença de restauração ou bebidas.

Para além da dificuldade do controlo público da frequência deste tipo de eventos, sobretudo em fins-de-semana ou meses de férias, estimula-se indirectamente a não emissão de facturas, na medida em que estas constituem um dos meios mais seguros e expeditos da comprovação do número de realizações. Uma regressão deste preceito relativamente ao regime do artº 28º, nº 2, da actual LRB, estranhando que não se avance qualquer explicação no preâmbulo tendo em conta o historial de contestação das associações empresariais em matéria de banquetes de casamentos e outras festas em quintas.

Para além disso, esta dispensa de licenciamento deve ser conjugada com o regime extraordinário de autorização previsto no artº 19º, tarefa interpretativa que não é isenta de escolhos.

Desde logo, porque o nº 1 do artº 19º, exige, para além do carácter remunerado, que a actividade de catering, banquetes ou outras seja anunciada. Faltando este segundo requisito, até 10 eventos anuais tais actividades não estão sujeitas nem ao regime ordinário do licenciamento nem ao extraordinário de autorização.

Por outro lado, o número de eventos não se apresenta de forma harmónica. No nº 1 do artº 3º ao realizar 10 eventos anuais tem de obter o licenciamento. No nº 2 do artº 19º até 10 eventos anuais ainda se encontra no âmbito do regime extraordinário de autorização.

5) Cantinas, refeitórios e bares de empresas ou escolas. A nova figura da secção acessória e a proibição de venda de álcool nas imediações de estabelecimentos do ensino básico e secundário

Mantém-se a exclusão do regime da LRB das cantinas, refeitórios e bares de entidades públicas, empresas ou estabelecimentos de ensino, cuja destinação consista no fornecimento de refeições e/ou de bebidas, com carácter exclusivo, ao respectivo pessoal e alunos (artº 3º, nº 2).

Às secções acessórias de restauração ou de bebidas é aplicável cumulativamente o regime do licenciamento do estabelecimento principal (por exemplo o Decreto-Lei nº 370/99, de 18 de Setembro) bem como a LRB e o regulamento a publicar (artº 3º, nº 3).

Mantém-se a proibição de instalação de estabelecimentos de bebidas onde se vendam bebidas alcoólicas próximos de escolas do ensino básico e secundário, cabendo a delimitação das áreas respectivas aos municípios (artº 4º).

6) Separação do plano legislativo e regulamentar

À semelhança dos empreendimentos turísticos, do turismo no espaço rural e do turismo de natureza, subsiste a distinção entre lei (agora aprovada) e regulamento, a publicar futuramente, o qual, de harmonia com o artº 5º desenvolverá os requisitos específicos relativos a instalações, funcionamento e regime de classificação destes estabelecimentos.

Os regulamentos, situando-se no plano inferior ao da lei, têm como finalidade a pormenorização ou desenvolvimento de uma norma ou conjunto de normas, pelo que o poder regulamentar é um poder subordinado ao poder legislativo, estabelecendo-se entre ambos uma hierarquia, só podendo o regulamento pormenorizar ou desenvolver a lei e não opor-se ou com ela conflituar, sob pena de nulidade. Pode, no entanto, disciplinar matérias não versadas pela lei.

O Decreto Regulamentar nº 38/97, de 25 de Setembro, que vigora actualmente é revogado, o mesmo sucedendo com o Decreto-Lei nº 168/97, de 4 de Julho (artº 26º). No entanto, até à publicação e início da vigência do aludido regulamento continuam a observar-se os requisitos de instalação e funcionamento dos estabelecimentos de restauração ou de bebidas que figuram nos dois diplomas ora revogados (artº 27º).

7) Fases de instalação e modificação. Dispensa de requisitos

As fases da instalação e modificação dos estabelecimentos estão sujeitos à LRB e ao RegRB a publicar (artº 6º, nº 1), mantendo-se o regime de consultas exteriores à câmara municipal no âmbito do licenciamento da construção das edificações, a saber:

– Autoridade Nacional de Protecção Civil relativamente a medidas de segurança contra riscos de incêndio;
– Autoridades de saúde em matéria de higiene e saúde públicas;
– Governador civil quanto a estabelecimentos com salas ou espaços destinados a dança;
– DRE ou associação inspectora de instalações eléctricas consoante a potência instalada.

Os pareceres emitidos nesse âmbito, com excepção destes dois últimos organismos, têm carácter vinculativo (artº 7º).

Da legislação anterior vem, igualmente, a dispensa de requisitos (artº 8º), precioso mecanismo de atenuação da rigidez da legislação do sector do turismo, seja por razões de natureza arquitectónica ou de rendibilidade, às quais se acrescentam razões de índole técnica.

Consagra-se inovadoramente o deferimento tácito em consequência do silêncio da câmara municipal a quem é cometida a decisão de dispensa de requisitos, após consulta à novel DGAE.

Em determinadas condições, tal matéria pode ser submetida a uma comissão arbitral em que participam entidades públicas (câmara municipal e DGAE) e privadas (o próprio interessado e uma associação empresarial sobre cuja designação a lei é omissa) sendo o respectivo presidente cooptado ou, na falta de acordo, designado pelo competente tribunal central administrativo (artº 9º).

8) Licenciamento da utilização

Não existe aqui qualquer novidade significativa, embora a determinado momento se tivesse criado uma forte expectativa da sua supressão, em parte decorrente do comunicado do Conselho de Ministros:

«Este Decreto-Lei vem, no âmbito do Programa Simplex, simplificar e desburocratizar os procedimentos de licenciamento dos estabelecimentos de restauração ou de bebidas, isentando estes estabelecimentos de licença de funcionamento e submetendo-os, em substituição, a um regime de declaração prévia quanto ao exercício de actividade.

Com efeito, o actual regime de licenciamento prévio impõe aos particulares um procedimento complexo e demasiado moroso, o qual se afigura penalizante para os agentes económicos e propiciador de situações irregulares de funcionamento de estabelecimentos.

Assim, passa a ser necessário apenas uma declaração prévia – um termo de responsabilidade – do promotor para o funcionamento do estabelecimento, através da qual se responsabiliza pelo respeito das normas legais e regulamentares aplicáveis, tendo em conta a actividade comercial a desenvolver.»

Mantêm-se, assim, o licenciamento da construção bem como o ulterior licenciamento da utilização para estabelecimento de restauração e bebidas. Matérias nucleares no âmbito da reforma em curso do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro).

Assim sendo, finda a construção e equipado o estabelecimento, segue-se obrigatoriamente, como no direito actual, a fase da licença de utilização para estabelecimentos de restauração ou de bebidas.

Onde é que está então a novidade? No seguinte:

Ultrapassado um prazo de 30 ou 20 dias, consoante se trate de licença ou autorização, sem que a mesma tenha sido concedida, o interessado pode socorrer-se do expedito mecanismo de comunicação à câmara municipal da abertura do estabelecimento, transmitindo-lhe «a sua decisão de abertura ao público» (arº 10º, nº 2) acompanhada de um conjunto de documentos.

De harmonia com o artº 12º a respectiva posse constitui um título válido de abertura do estabelecimento.

Note-se, porém, que este garantístico e célere mecanismo de o empreendedor comunicar à câmara municipal a abertura do estabelecimento de restauração e bebidas (o nº 4 parece diluir esta comunicação na figura da declaração prévia), logo que esgotados os prazos para a emissão do alvará de utilização, diferentemente da ideia que tem sido transmitida, não é uma originalidade desta lei.

Com efeito, no preâmbulo da LRB de 1997 (agora revogada) afirma-se: «Na mesma perspectiva de simplificação, estabelece-se um regime inovador no que respeita à abertura dos empreendimentos, permitindo-se aos interessados que o façam sem estarem prisioneiros das peias burocráticas, caso não sejam cumpridos os prazos fixados para a actuação da Administração» sendo tal matéria disciplinada na versão originária do nº 5 do artº 14º.

9) Declaração prévia

No artº 11º alude-se à figura da declaração prévia, uma declaração que o titular da exploração do estabelecimento – que se encontra munido de licença ou autorização de funcionamento – apresenta na câmara municipal antes de iniciar a actividade. Como se referiu, o legislador rotula como tal a comunicação de abertura do estabelecimento (artigos 10º, nº 4 e 12º, n º 1).

10) Breve excurso por normas relativas ao funcionamento

Do direito anterior transitam um conjunto de regras relativas à exploração e funcionamento destes estabelecimentos, v.g., em matéria de veracidade do nome (artº 13º), no acento tónico na liberdade de acesso aos estabelecimentos apenas limitado pela perturbação do funcionamento (artº 14º), período e horário de funcionamento (artº 15º), o livro de reclamações em que o sector do turismo é pioneiro (artº 16º) e o registo dos estabelecimentos agora organizado pela novel DGAE (artº 17º).

No artº 19º prevê-se um regime especial de autorização para a prestação, com carácter remunerado e publicitação, de serviços de restauração ou de bebidas, com carácter esporádico e ou ocasional, desenvolvidas em quaisquer tipos de instalações.

11) Fiscalização e disposições finais

A competência para a fiscalização da LRB é atribuída à ASAE (artº 20º) – as infracções em matéria do RJUE mantêm-se nas câmaras municipais – estabelecendo-se as respectivas coimas, algumas de montante assaz significativo, no artº 21º e as sanções acessórias de encerramento temporário ou definitivo do estabelecimento no artº 22º.

Aos estabelecimentos já existentes que disponham de autorização de abertura ou de licença de utilização, mantendo-se os respectivos alvarás válidos até à realização de obras de modificação, é imposta a obrigação de comunicação prevista no nº2 do artº 17º.

O diploma tem uma vacatio legis de 30 dias (artº 28º), iniciando, assim, a sua vigência em 19 de Julho de 2007.

12) Apreciação global da iniciativa legislativa

Não obstante dever aguardar-se pelo decreto regulamentar, para um balanço mais consolidado da intervenção governamental, parece-me que se trata de uma iniciativa algo incipiente cujas inovações – fundamentalmente a comunicação de abertura ultrapassado o prazo que a câmara dispõe para a emissão do alvará de licença de utilização – poderiam ser alcançadas com a alteração de meia dúzia de artigos da lei existente, um pouco à semelhança da modificação registada no domínio da Lei dos Empreendimentos Turísticos com o Decreto-Lei nº 217/2006, de 31 de Outubro.

Estas alterações poderiam, sem qualquer dificuldade, ter sido introduzidas logo no início da Legislatura – desde 2001 que a licença de utilização não depende de prévia vistoria municipal – ou, no limite, simultaneamente com as dos empreendimentos turísticos publicadas em Outubro de 2006. Paradoxalmente, são introduzidas precisamente numa ocasião em que se justificava aguardar uns escassos meses pela reforma em curso do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, que como facilmente se intui, motivará alterações ao diploma em análise.

Para além disso, transformar uma tardia intervenção legislativa em algo de extraordinário, politicamente transcendente é, quanto a mim, motivo de alguma perplexidade.

Não entendo, pois, alguns encómios à nova lei da restauração e bebidas, que me parecem francamente exagerados. Estamos muito longe, muito longe mesmo, de edifícios normativos como o da Lei Hoteleira de 1986 ou da reforma de 1997, aplicando-se mais adequadamente ao diploma legal em análise o conhecido adágio da montanha e do rato.

Carlos Torres
Advogado
Artigo publicado em TURISVER
(Ano XXII, nº 6833 – 5 de Julho de 2007)