quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

A surpreendente Intenção Governamental de suprimir no Decreto-Lei nº 167/97 os Meios Complementares de Alojamento Turístico


O Estado não pode demitir-se de regular a oferta complementar ou secundária de alojamento a turistas (aldeamentos, apartamentos e moradias turísticas) abandonando-a totalmente às virtualidades do mercado.

Introdução

O projecto governamental de revisão do regime jurídico de instalação e funcionamento dos empreendimentos turísticos constante do Decreto-Lei nº 167/97, de 4 de Julho (LET), recentemente apresentado, prevê a eliminação dos meios complementares de alojamento turístico.

De harmonia com o quadro, existem actualmente cinco tipos de empreendimentos turísticos (artº 1º, nº 2 LET): 1º) Estabelecimentos hoteleiros; 2º) Meios complementares de alojamento turístico; 3º) Parques de campismo públicos; 4º) Parques de campismo privativos; 5º) Conjuntos turísticos.

Se o projecto de alterações passar a letra de lei, eliminam-se dois tipos de empreendimentos turísticos. A supressão dos parques de campismo privativos é, do meu ponto de vista, isenta de dúvidas, porquanto a temática, que remonta a finais de 2001, foi amplamente debatida e corresponde a uma aspiração do associativismo empresarial, que demonstrou, como lhe competia, o carácter forçado da transformação desses equipamentos associativos em empreendimentos turísticos. Quanto aos meios complementares de alojamento, a surpresa é total. Que me recorde, governantes, empresários ou estudiosos da matéria nunca haviam abordado, directa ou indirectamente, uma proposta tão radical.

No preâmbulo do projecto de alterações legais não é avançada qualquer explicação, pelo que não existe o mínimo apoio hermenêutico. E deveria existir face à enorme projecção desta realidade turística e às múltiplas interrogações que suscita a sua eliminação do elenco de empreendimentos turísticos.

Por seu turno, o PDT não aponta para qualquer redução da tipologia de empreendimentos turísticos. Embora nele se aluda a um «processo de desregulamentação das tipologias e dos requisitos técnicos» que possa determinar uma perda de influência da lei em detrimento das «virtualidades do mercado como mecanismo regulador» (idem, PDT), não parece aceitável, mesmo dum ponto de vista liberal extremo, que se retire da lei, sem mais, uma realidade há muito existente.

Vou, assim, fazer um breve excurso pela actual disciplina dos meios complementares de alojamento, por forma a melhor evidenciar o significado e alcance desta inusitada medida. Demonstrando a indispensabilidade para a actividade turística deste corpo de normas que disciplina, com a indispensável profundidade, realidades existentes no terreno. Por razões de espaço, não posso entrar na análise do seu sucedâneo legal, a imobiliária turística e de lazer, a qual, atenta a sua problematicidade, será desenvolvida num próximo artigo.

Aldeamentos, moradias e apartamentos turísticos

O artº 3º da LET caracteriza os meios complementares de alojamento como os empreendimentos turísticos destinados a proporcionar alojamento temporário, com ou sem serviços acessórios e de apoio. Como a LET procede tão somente ao enquadramento geral da actividade, a disciplina mais pormenorizada de cada um dos tipos de empreendimentos turísticos vamos encontrá-la ao nível de quatro decretos-regulamentares, um para cada tipo de empreendimento turístico. Para os meios complementares de alojamento, a tal disciplina de pormenorização e desenvolvimento figura no Decreto Regulamentar nº 34/97, de 17 de Setembro (abreviadamente RegMCA), que vamos percorrer de seguida. Como facilmente se intui, se os meios complementares de alojamento forem eliminados da LET, o RegMCA será revogado.

O artº 1º opera a seguinte classificação tripartida dos meios complementares de alojamento:

– aldeamentos turísticos;

– apartamentos turísticos;

– moradias turísticas.

O traço comum é o destinarem-se a proporcionar, com carácter remunerado, alojamento a turistas com ou sem serviços adicionais e de apoio. Vejamos agora como se diferenciam entre si.

Os aldeamentos turísticos são constituídos por um conjunto de instalações com interdependência funcional, que apresentam homogeneidade ao nível arquitectónico, espacialmente delimitadas na sua totalidade por meios naturais ou artificiais de molde a lograrem a indispensável autonomização e privacidade. Não podem unir parcelas de terrenos separadas entre si por estradas nacionais ou municipais, salvo quanto estas fizerem parte das respectivas infra-estruturas urbanísticas (artº 2º).

Enquanto os apartamentos turísticos são constituídos por fracções de edifícios independentes, as moradias turísticas encontram-se instaladas num edifício autónomo de carácter unifamiliar (arts 3º e 4º). No entanto, ambas as realidades encontram-se dotadas de mobiliário e equipamento, destinando-se a proporcionar, com carácter de habitualidade, alojamento e outros serviços complementares e de apoio a turistas.

As unidades de alojamento dos aldeamentos turísticos são repartidas por duas categorias, as moradias e os apartamentos. Requisito comum a ambas é constituírem unidades independentes, distintas e isoladas entre si e disporem de saída própria para o exterior no caso das moradias ou, tratando-se de apartamentos, para uma parte comum do edifício em que estão integradas.

Dada a sua afectação turística, a lei impõe que as unidades de alojamento se encontrem mobiladas, equipadas e disponham dos utensílios adequados ao tipo, capacidade e categoria do estabelecimento, estabelecendo ainda a seguinte configuração mínima: quarto de dormir, sala de estar e de refeições, pequena cozinha (kitchenette) e, finalmente, uma instalação sanitária privativa.

Nos arts 15º a 22º figuram os requisitos de funcionamento, designadamente:

– a especial qualificação (v.g. curso de gestão hoteleira) do responsável pelo funcionamento quando o aldeamento disponha de um certo número de unidades afectas à exploração;

– placa identificativa da classificação;

– núcleo de serviços mínimos a prestar pela recepção/portaria;

– cartão de utente;

– acervo informativo obrigatoriamente disponível no interior do apartamento ou moradia;

– frequência da arrumação e limpeza;

– hora de saída do utente;

– fornecimentos obrigatoriamente incluídos no preço;

– e, finalmente, habilitações, uniformização e identificação do pessoal de serviço.

Infra-estruturas e serviços

No artº 23º enumeram-se as instalações e equipamentos de uso comum dos aldeamentos turísticos, designadamente a recepção, jardins e outras zonas verdes, piscinas, parques infantis, campos de jogos, parques de estacionamento, arruamentos, meios de segurança e detecção contra riscos de incêndio, reservatórios de água potável e de combustíveis e sistema de armazenagem de lixos.

Por seu turno, os serviços de utilização turística de uso comum figuram no artº 24º: arrumação e limpeza, recolha de lixos, conservação e manutenção das instalações e equipamentos comuns e, por fim, segurança e vigilância.

Finalmente, as instalações e equipamentos de exploração turística dos aldeamentos turísticos são enumeradas no artº 26º: estabelecimentos de restauração e de bebidas, estabelecimentos comerciais, equipamentos de animação e desportivos e, por último, campos de golfe.

Normas sobre classificação

A classificação dos meios complementares de alojamento decorre da aplicação dos tradicionais critérios de localização, qualidade das unidades de alojamento e dos serviços que oferecem aos seus utentes. Critérios que por razões de simplificação legislativa, em ordem a facilitar a apreensão dos requisitos pelo empreendedor, se encontram vertidos numa tabela (um anexo para cada um dos sub-tipos). Surgem-nos, no entanto, os seguintes critérios específicos: o índice de ocupação das unidades de alojamento relativamente à totalidade da área do aldeamento, a relação entre a área total ocupada pelo aldeamento e a sua capacidade, a qualidade das unidades de alojamento e, por fim, a diversidade de instalações acessórias dos aldeamentos e moradias.

Altura máxima dos edifícios que integram Aldeamentos Turísticos

O artº 8º consagra uma regra importante para a defesa da actividade turística: os edifícios que integram os aldeamentos turísticos não podem ter uma altura superior a três pisos, sendo que nestes se inclui o rés-do-chão.

Esta regra não preclude naturalmente a eventual fixação de um número inferior de pisos decorrente de plano director municipal, plano de pormenor ou alvará de loteamento. Ou seja, podem os instrumentos de gestão territorial ser mais restritivos que o legislador turístico mas nunca se poderá exceder a limitação vertical por este fixada.

A componente imobiliária e a forma como o legislador turístico a condiciona

Alguns empreendimentos turísticos permitem que lhes seja acoplada uma componente imobiliária significativa. Tal ocorre em sede de estabelecimentos hoteleiros, mais precisamente nos hotéis-apartamentos (aparthotéis), nos quais 70% das unidades de alojamento devem encontrar-se afectas à exploração turística (art 30º, nº 1 RegEH), isto é, disponíveis para serem locadas diariamente a turistas pela respectiva entidade exploradora. Donde, 30% podem ser vendidas, arrendadas ou destinadas a qualquer outra aplicação de natureza puramente imobiliária.

Nos aldeamentos turísticos, o regime é ainda mais favorável à aludida componente, fixando-se tão somente uma quota mínima de 50% das unidades de apartamentos ou moradias afectas à exploração turística do empreendimento (artº 27º).

De qualquer modo, em ambas as situações considera-se que as unidades de alojamento continuam afectas à exploração turística mesmo que os proprietários as utilizem até ao limite de noventa dias por cada ano, de harmonia com o contratualmente fixado com a respectiva entidade exploradora.

Na versão originária do RegMCA, tal como na disciplina dos estabelecimentos hoteleiros, condicionava-se a venda, arrendamento, direito de uso e habitação ou qualquer outra forma translativa da propriedade de uma fracção autónoma, à prévia autorização da DGT – a recusa só poderia ocorrer quando fosse afectada a quota mínima de exploração turística –, sancionando-se a sua falta com uma pesada sanção, a nulidade do negócio jurídico. Em 1999, foi suprimida a necessidade de tal autorização da DGT .

Para os apartamentos e moradias turísticas não é fixada uma quota mínima de unidades de alojamento afectas à exploração, mas uma presunção de exploração turística, a qual uma vez formada conduz ao necessário cumprimento dos respectivos requisitos mínimos (arts. 37º e 53º).

Conclusão

A disciplina dos aldeamentos, apartamentos e moradias turísticas projecta-se sobre uma realidade existente no terreno há várias décadas, correspondendo a uma efectiva necessidade de regulamentação jurídica. Percorremos um significativo conjunto de regras que não são susceptíveis de ser eliminadas, ficando-se, assim, totalmente à mercê das virtualidades do mercado.

Sob o manto desenvolvimentista do turismo foi possível a edificação de construções que de harmonia com as regras gerais estariam normalmente interditas. Não parece aceitável que se eliminem agora as obrigações impostas em contrapartida da maior permeabilidade edificativa, frustando as expectativas de proprietários e empresários que tomaram as suas decisões num quadro de qualidade imposto pela legislação turística.

A oferta complementar de alojamento a turistas continuará, assim, no futuro a carecer de uma disciplina legal cujo grau de exigência variará na razão directa dos padrões impostos por um turismo de maior ou menor qualidade. Acentuam-se ou aligeiram-se os requisitos mínimos em razão das concepções dominantes em cada período, mas não me parece que os possamos dispensar in totum nos anos vindouros. Até porque as crescentes exigências do turismo, ao qual se encontra indissociavelmente ligado o futuro do país, não se coadunam minimamente com a ausência de disciplina num sector tão sensível, maxime por lhe estar associada uma significativa componente imobiliária.

Tipos de Empreendimentos Turísticos

1º Hotéis

2º Hotéis-apartamentos

Estabelecimentos Hoteleiros – Grupos

3º Pensões

4º Estalagens

5º Móteis

6º Pousadas

Aldeamentos Turísticos (*)

(*) Meios Comp. de Alojamento – Sub-tipos

Apartamentos Turísticos (*)

Moradias Turísticas (*)

Parques de Campismo Públicos e Privativos (*)

Conjuntos Turísticos

(*) Eliminados no projecto governamental de revisão do DL nº 167/97.

Carlos Torres

Advogado

VIAJAR, nº 132 – Novembro de 2003