1) Condições políticas ímpares para a criação de uma legislação do turismo consensual, estável e acessível aos cidadãos
Encerrado um ciclo político, creio que a actual Legislatura, mercê das condições políticas ímpares decorrentes duma confortável maioria parlamentar, pode e deve gerar uma legislação do turismo que reuna o consenso dos principais intervenientes do sector, públicos e privados, a qual perdure no tempo imune às efémeras modas que estão associadas à entrada de novos governantes, dirigentes associativos, empresários, autarcas, imprensa especializada, etc..
A crescente importância do turismo para o futuro do país pressupõe legislação simples, estável e consensual, de molde a que as atenções se centrem em torno das múltiplas questões que todos os dias a evolução deste poderoso sector da economia suscita e não em caústicas afirmações de pendor genérico sobre um alegado carácter paralisador da legislação, cerceador do investimento e emprego. Com efeito, não tem qualquer interesse para um desenvolvimento harmonioso do sector a manutenção de um recorrente coro de críticas ao edifício normativo existente sem que se avance construtivamente um conjunto de propostas concretas para a sua modificação, isto é, identificando com precisão o que está mal e propondo, em sua substituição, concretas soluções materiais.
Muito recentemente, um alto dirigente associativo, conhecido pela sua moderação e lucidez, declarou que oitenta por cento dos problemas da legislação hoteleira decorrem fundamentalmente do incumprimento de prazos por parte das entidades competentes e que até aceita a manutenção da lei actual na condição de serem observados os prazos nela previstos.
Partilho deste ponto de vista quanto ao carácter globalmente positivo do conjunto de regras existentes em matéria de legislação hoteleira em particular e dos empreendimentos turísticos em geral, embora seja possível melhorar significativamente o seu acesso e inteligibilidade para a generalidade dos destinatários. Afigura-se-me, no entanto, que as verdadeiras novidades legislativas, as regras de direito material de conteúdo inovador que podem ser introduzidas numa reforma legislativa não serão certamente em elevado número.
Adepto confesso da estabilidade legislativa, não posso deixar de tomar em linha de conta que em 2007 se cumprem dez anos sobre a publicação da actual normação do turismo. Um ciclo de vida equivalente ou mesmo superior ao da lei hoteleira (Decreto-Lei nº 328/86, de 30 de Setembro, o qual foi complementado e desenvolvido pelo Decreto-Regulamentar nº 8/89, de 21 de Março).
Simplificar, melhorar o acesso dos cidadãos ao direito do turismo, tornar as regras existentes mais inteligíveis constitui um dos grandes objectivos de um Código do Turismo. Para mais, sendo o sector maioritariamente constituído por PME, que, em regra, não dispõem de recursos humanos na vertente jurídica, tal simplificação torna-se ainda mais premente.
Simplificação legislativa que se encontra na ordem do dia ao nível comunitário, tendo a Comissão Europeia lançado no passado dia 18 de Março uma iniciativa para simplificar e desburocratizar a legislação comunitária – destacando-se nos primeiros 18 blocos legislativos a 6ª Directiva do IVA (atente-se nas taxas dos diferentes serviços turísticos e no regime especial da margem aplicável às agências de viagens) – na sequência da Estratégia de Lisboa, no pressuposto de que tal facilitará a vida das empresas maxime as PME, aumentando o crescimento e o emprego. O tema será prioritário na presidência britânica que terá lugar no segundo semestre do corrente ano.
2) Evoluir de uma multiplicidade de diplomas legais, nem sempre coerentes entre si, para um repositório único
A circunstância de a actual legislação se encontrar dispersa por múltiplos diplomas, que se sucederam no tempo, suscita para além de um problema quantitativo a questão da coerência, da visão de conjunto entre eles.
Para não me alongar excessivamente, vejamos a paradigmática disciplina do alojamento. Na modalidade mais comum e significativa, ou seja, em sede de empreendimentos turísticos, deparamo-nos para além de um diploma base (LET, DL nº 167/97, de 4 de Julho) com quatro decretos-regulamentares, um por cada tipo (estabelecimentos hoteleiros, meios complementares de alojamento, parques de campismo e conjuntos turísticos). No turismo no espaço rural, dois diplomas e três no âmbito do turismo de natureza. Várias portarias complementam tal disciplina, designadamente em matéria de segurança contra riscos de incêndio, procedimentos de instrução nos pedidos de licenciamento, implantação, organização e registo, modelo de alvará de licença de utilização turística e placas de classificação.
Numa patente tautologia normativa, um significativo número de normas materiais repete-se em cada um dos diplomas apontados (e noutros) v.g. em sede de instalação, funcionamento e acesso aos empreendimentos.
O Código do Turismo permitirá condensar esse conjunto de diplomas, expurgando as sucessivas duplicações normativas e tornando mais inteligível o seu conteúdo. Não só a sistematização e simplificação do direito do turismo existente, a reunião num único diploma do conjunto de regras vigentes, constitui uma significativa mais valia de um código do turismo, como também a inserção de algumas medidas inovadoras que sejam consensuais e que resultem de um sereno, cuidado e exaustivo processo de preparação legislativa em que intervenham todos os interessados, sem os tradicionais secretismos ou favorecimento de interlocutores.
3) Inclusão da organização institucional do turismo, ambiente, ordenamento do território e fiscalidade do turismo
O Código do Turismo atento o seu carácter tendencialmente exaustivo da legislação turística, deverá incorporar toda a matéria relativa à administração do turismo no plano central, regional e local. Ou seja, as matérias relativas às grandes instituições do turismo português, designadamente a DGT, regiões de turismo, INFTUR e o novel Instituto de Turismo de Portugal devem figurar no código.
Também as normas ambientais directamente relacionadas com o turismo deverão ser incluídas no código, assim como as do ordenamento do território, sobretudo em sede de instrumentos de gestão territorial, o plano sectorial do turismo.
Naturalmente que em razão da transversalidade do turismo, nem todas as matérias com ele relacionadas poderão figurar no código, mas tão-somente as que possuam uma forte conexão como as acima referidas. Assim, continuarão compreensivelmente fora da legislação turística um conjunto de diplomas em matéria de saúde, transportes, património cultural, segurança alimentar, etc..
Quanto à fiscalidade do turismo, que tudo indica entrará inevitavelmente na ordem do dia nos próximos tempos, também deverá figurar no código.
4) Ainda a vaexata quaestio do Ministério do Turismo e outras breves considerações
4.1) Espero que esta Legislatura corresponda a um período de estabilidade dos governantes do turismo. Com efeito, aqueles que consensualmente são considerados como os grandes governantes do turismo da III República são precisamente os que conseguiram associar ao seu mandato um mínimo de estabilidade, dispondo do tempo indispensável para implementar o seu programa.
4.2) Para além das razões que apresentei no meu artigo de 5 de Agosto de 2004 (Turisver nº 619, pág. 8), gostaria de referir que me parece algo falacioso o argumento de que o que interessa é a competência da pessoa (o titular) que tem a responsabilidade de governação do turismo, independentemente de ser ministro ou secretário de Estado.
Sendo um bom profissional, parece-me óbvio que as condições para implementar as grandes decisões do turismo, as quais pela sua transversalidade passam inexoravelmente pela concertação com outros ministérios, serão maiores se o governante estiver no centro da decisão política ao mais alto nível (o Conselho de Ministros) do que através de interposta pessoa (o ministro da Economia). Por outro lado, a experiência tem demonstrado que o ministro da Economia vive assoberbado com múltiplos afazeres e não tem, em regra, um conhecimento aprofundado do sector.
Os defensores da tese minimalista da orgânica governamental, dentre os quais avulta o meu ilustre colega de docência Carlos Costa, projectam a sua experiência pessoal (um secretário de Estado de fortíssima personalidade e empenho nas questões do turismo, numa relação de grande confiança pessoal com um ministro da Economia sempre em ascensão junto do Primeiro-Ministro e no seio do Governo) para o comum das situações. Será que Vítor Neto dependendo politicamente de um ministro da Economia semelhante a Carlos Tavares teria levado a nau a bom porto?
Embora bastante firme, penso que o actual Primeiro-Ministro não será insensível a uma argumentação serena, consistente e plenamente demonstrativa das vantagens de um ministério do turismo, dentre as quais avulta a especialização ao mais alto nível da função política, até porque certamente se recordará da sua capacidade de influenciar as políticas do ambiente quando era secretário de Estado ou quando mais tarde ascendeu a ministro.
O rótulo da solução terceiro-mundista para o ministério do turismo era previsível (ver o artigo de opinião acima referido) e facilmente rebatível. Basta atentar na orgânica governamental de França, o maior destino turístico mundial em termos de chegadas de turistas. Embora o seu ministério inclua para além do turismo o equipamento, os transportes, o ordenamento do território e o mar (atente-se na forte conexão entre as diferentes áreas), Léon Bertrand quando actua nas importantes matérias turísticas, para as quais vem aliás revelando uma acentuada sensibilidade e preparação, é oficialmente designado como «ministre délégué au Tourisme».
4.3) Nos dois primeiros artigos sob a égide da tribo do turismo aflora-se igualmente, para além da dicotomia Ministério/Secretaria de Estado do Turismo, a questão Vítor Neto, o governante que detém o recorde da governação ininterrupta do sector. O facto de grande parte das suas propostas terem sido plasmadas no programa eleitoral do PS indiciava, com elevada probabilidade, o seu iminente retorno à governação gerando, consequentemente, algumas resistências no interior da sua família política. Defendi, no período pré-eleitoral, que a escolha deveria recair em José Apolinário, mercê do bom trabalho desenvolvido em sede parlamentar e pela desejável regra de o responsável político na oposição dever ulteriormente ascender à governação (Turisver nº 627, de 5 de Janeiro de 2005, pág. 10). Mas não acredito, de todo, na redutora teoria de a água não correr duas vezes sob a mesma ponte, em giza de obituário político de Vítor Neto, bastando atentar no facto de Licínio Cunha, outro grande governante do turismo, ter integrado sucessivamente o IV, V, X e XI Governos Constitucionais. Pela energia, vontade e conhecimento profundo do sector estou convicto que Vítor Neto voltará um dia à governação do turismo, mesmo com a significativa oposição de alguns dos seus camaradas. Reflexo afinal de o PS dispor de variadas e sólidas alternativas no domínio do turismo.
4.4) Finalmente, sem embargo do estado de graça que todos os Executivos devem desfrutar, parece-me, no mínimo pouco edificante, a forma como foram afastados dos seus cargos os titulares da administração do Instituto de Turismo de Portugal e do INFTUR, trazendo-me à memória o pior estilo de Carlos Tavares/Santana Lopes. Não se faz, noblesse oblige!
Feito este incontornável reparo, regozijo-me – não posso, por desconhecimento, pronunciar-me sobre as demais – com a excelente escolha de Jorge Umbelino, professor de referência da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, que ascende à presidência do INFTUR. No topo de um organismo com enormes responsabilidades na área da formação é investido um profissional que, para além de deter a mais elevada qualificação académica (não abundam infelizmente no sector os doutorados), conhece a realidade do turismo, tendo inclusivamente exercido as funções de sub-director-geral do Turismo. Para ele e demais investidos votos dos maiores sucessos.
Carlos Torres
Advogado
Artigo publicado em TURISVER
(Ano XX – nº 636 – 20 de Maio de 2005)