quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

O Questionável Modelo de Revisão da Legislação Laboral


O resultado final deste processo de alteração das leis laborais ficará certamente muito aquém das expectativas criadas e poderia ter sido alcançado com maior discrição e eficiência, sem a conflitualidade e os elevados custos sociais que lhe estão associados.

Nos últimos meses, as preconizadas alterações da legislação laboral introduziram na sociedade portuguesa uma forte instabilidade, surgindo um conjunto de preocupações de vários quadrantes e instituições que, nalguns casos, rivalizaram ou excederam as existentes em matéria de evolução da situação económica e do défice das contas públicas. De um lado, os sindicatos apontando para a ameaça de grave lesão dos direitos dos trabalhadores, do outro, as associações patronais clamando pela introdução da flexibilização das relações de trabalho, por forma a que as empresas portuguesas pudessem competir internacionalmente.

A opção governamental por um Código do Trabalho é claramente minoritária em termos europeus. Com efeito, só em França surge o modelo de codificação das leis laborais, o que, aliás, se compreende por razões históricas ligadas ao célebre modelo gaulês de estruturação legislativa, o Code Napoleon, que tanto influenciou as legislações civilistas europeias no século XIX e na primeira metade do século XX.

A questão da codificação da legislação laboral havia sido ponderada pela Comissão de Análise e Sistematização da Legislação Laboral (CLL), instituída pelo anterior Governo, a qual era integrada por reputados especialistas de Direito do Trabalho, representativos das diferentes sensibilidades políticas.

Estudou-se, com profundidade, o modelo francês e o espanhol, vindo inclusivamente a Portugal dois professores estrangeiros, um de cada nacionalidade. No final, a CLL propendeu, na sua esmagadora maioria, com uma única voz discordante, para um modelo próximo do Estatuto de los Trabajadores e para a clara rejeição do Code du Travail.

O Programa do XV Governo Constitucional não contém qualquer elemento de ruptura com o amplo consenso então existente, desde os partidos políticos aos parceiros sociais, em torno da proposta de uma Lei Geral do Trabalho relativa às relações individuais de trabalho, apresentada pela CLL. Até indiciava o seu aproveitamento como parece resultar do seguinte excerto do Programa do Governo:

«A legislação laboral em vigor carece, em alguns dos seus aspectos, de urgente revisão, tendo em vista a sua sistematização e adaptação às novas necessidades da organização do trabalho e ao reforço da produtividade e da competitividade da economia nacional. Neste contexto, constituem medidas prioritárias:

– a sistematização, sintetização e simplificação da legislação laboral em vigor, tornando-a mais acessível e compreensível para todos os seus destinatários;»

Apesar do trabalho muito consensual do ponto de vista técnico e político da CLL, entretanto completado pela apresentação da proposta relativa às relações colectivas, o mesmo não teve seguimento sem embargo do Sr. Ministro da Segurança Social e do Trabalho lhe tecer, ainda muito recentemente, rasgados elogios. Afastando-se, assim, a Lei Geral do Trabalho que surgia como uma dádiva política, uma enorme vantagem em matéria tão sensível como as relações laborais.

No entanto, algo incompreensivelmente, entrou-se num clima de confrontação e disputa política. O Governo passa a bater-se por um Código do Trabalho, que não consegue explicar com um mínimo de consistência pois só muito recentemente o Sr. Ministro Bagão Félix viria, em sede parlamentar, a avançar a tese da «visibilidade» dos direitos das partes. A reforma da legislação laboral corporizada naquele acervo normativo, em certo momento erigido como um verdadeiro monumento jurídico, é apresentado como indispensável para a produtividade e competitividade das empresas, uma reforma estrutural que há muitos anos não se verificava na sociedade portuguesa. Alude-se à rigidez das relações laborais, a um país pobre que não progredirá em razão das suas leis do trabalho desadequadas e potenciadoras da ineficiência económica, fortemente dissuasoras do investimento estrangeiro.

Uma parte do empresariado acredita então que o Governo irá aprovar uma lei laboral que lhe permita extinguir com maior liberdade os contratos de trabalho existentes e os sindicatos extremam posições perante tal possibilidade.

É certo que Portugal é apontado pela OCDE como um dos países em que o trabalho permanente (corresponde ao trabalhador na situação de efectivo, legalmente designado por trabalhador por tempo indeterminado) apresenta maior rigidez, no sentido de que o trabalhador dispõe de um conjunto de normas protectoras que limitam fortemente a liberdade do empregador extinguir o vínculo contratual. Encontrando-se, assim, bastante longe dos países anglo-saxónicos, a distância considerável do denominado modelo social europeu e, mesmo ao nível mediterrânico, com maior rigidez, designadamente relativamente a Espanha.

No entanto, os constrangimentos de natureza constitucional à supressão das garantias do estatuto do trabalhador são fortes e deveriam ter sido ponderados atempadamente de molde a que a revisão das leis laborais se desenvolvesse duma forma consensual. Não vale a pena lançar discussões que, independentemente da maior ou menor resistência social, estão à partida condenadas ao insucesso por colidirem com a Constituição da República.

Além do mais, mesmo que a Constituição permitisse tais modificações, a sua influência na competitividade seria aparentemente muito reduzida. Também aqui, existiu um enfoque incorrecto do problema. O elevado custo de factores de produção como a energia e comunicações, a ausência de uma política de concorrência efectiva, um sistema de justiça ineficiente e os fracos resultados da educação aliados à falta de formação, são bem mais relevantes em tal domínio. A fiscalidade (por sinal moderada, tirando a questão do IRC) e as leis laborais não têm influência relevante na competitividade, como reconhecem economistas de elevada reputação, nomeadamente o Professor Silva Lopes.

Redigindo este artigo na tarde de 9 de Janeiro, enquanto decorre a reunião entre o Governo e os parceiros sociais, referem-me que a Proposta de Lei nº 29/IX, de 12 de Novembro de 2002, relativa ao Projecto do Código de Trabalho que o Governo apresentou na Assembleia da República no passado mês de Novembro, se encontra fortemente modificada, pelo que fará mais sentido analisar as principais modificações num artigo futuro. Sendo bastante complexa a actual situação constitucional e política em matéria jus laboral, o Governo ver-se-á, segundo creio, na necessidade de se refugiar na UGT, aproveitando, simultaneamente, o ensejo para expurgar da Proposta de Lei algumas alegadas inconstitucionalidades que o preocupam.

O resultado final deste processo legislativo ficará certamente muito aquém das expectativas criadas e poderia ter sido alcançado com maior discrição e eficiência, sem a conflitualidade e os elevados custos sociais que lhe estão associados.

Carlos Torres

Advogado

Turisver, Ano XVIII – nº 584 – 20 de Janeiro de 2003