quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

A Ingerência do Governo nas Eleições da Região do Turismo do Algarve. Uma Lição para o Futuro


O Governo não resistiu a imiscuir-se na eleição para a comissão executiva da RTA, intervindo activamente e de uma forma assaz censurável. Era-lhe exigível uma postura de Estado, equidistante, respeitando uma eleição de grande importância em sede de administração regional do turismo, com projecção na liderança da associação das regiões de turismo, mas não conseguiu resistir ao apelo político-partidário. Nos estádios mais avançados da vida democrática não se pode prescindir da legitimação ética do resultado eleitoral.

No passado dia 28 de Abril de 2003, realizaram-se eleições para a comissão executiva da Região de Turismo do Algarve (RTA). Como o título do artigo indicia, analisarei o comportamento do Governo e a sua influência, aparentemente decisiva, no resultado das eleições.

As regiões de turismo – pessoas colectivas de direito público, dotadas de autonomia administrativa e financeira e património próprio – dispõem de dois órgãos: uma assembleia, denominada comissão regional (art.º 13º LRT) e um governo, composto por cinco membros, denominado comissão executiva (art.º 15º LRT). A presidência da comissão executiva é cometida ao presidente da região de turismo, sendo os restantes quatro membros designados por vogais.

A comissão executiva é eleita pela comissão regional. De harmonia com o artº 8º dos Estatutos da RTA, podemos separar no órgão máximo da pessoa colectiva dois grupos fundamentais: de um lado, os representantes públicos, do outro os privados. Nos públicos, para além do presidente da região de turismo e de um representante de cada uma das câmaras municipais (a força dominante), figuram os representantes dos membros do Governo com a tutela sobre o turismo, saúde, transportes, ambiente e recursos naturais, Delegação Regional do Algarve do Ministério da Cultura, Comissão de Coordenação da Região do Algarve, Escola de Hotelaria e Turismo do Algarve e do INAC. Nos privados, surgem os representantes da AHETA, AIHSA, APAVT, ARAC, Associação de Comerciantes da Região do Algarve e representantes distritais da UGT e da CGTP.

A grande importância da RTA motivou um forte interesse em torno do acto eleitoral. Os observadores vaticinavam alternadamente a vitória de Paulo Neves ou de Helder Martins, em qualquer dos casos por uma escassa margem. Dividiam-se, assim, as opiniões quanto ao provável vencedor, confluindo porém no fortíssimo equilíbrio da disputa eleitoral.

As consequências da eleição não se confinavam à RTA. Paulo Neves, mercê da presidência da RTA, comanda os destinos da ANRET e liderou recentemente, com discrição mas com eficiência, o combate à eliminação do modelo de regionalismo turístico existente, por outro de cariz macro-regional, preconizado pelo anterior Secretário de Estado do Turismo, Pedro de Almeida. Na anterior Legislatura foi particularmente notável o seu combate em prol do modelo de administração regional do turismo sedimentado ao longo de dois decénios, com episódios de grande inteligência e combatividade política, que acompanhei à distância, nomeadamente a intervenção da Assembleia da República no que respeita à competência das DRE e a transformação das regiões de turismo em institutos públicos.

Em razão do grande equilíbrio entre as duas listas, o Governo poderia sentir-se tentado a desempenhar mais activamente o papel de fiel da balança. O lado para que pendesse determinaria o vencedor, sendo que tal resultado se projectaria inelutavelmente na presidência da associação das regiões de turismo.

Impunha-se, assim, ao Governo uma postura de grande serenidade e distanciamento. Os seus representantes estavam há muito designados, pelo que deveriam ser eles, conhecedores da realidade da região de turismo, a expressar o seu voto. Desse modo, o Governo não podia ser acusado de qualquer interferência no resultado eleitoral ou que tinha aproveitado o ensejo para se livrar de um consistente defensor das regiões de turismo.

Porém, à tranquilidade e ao distanciamento preferiu o Governo o frenesim da substituição dos seus representantes. A escassos dias do acto eleitoral, o Ministro da Cultura alegando impossibilidade do Delegado Regional da Cultura do Algarve, nomeia um representante ad hoc em substituição daquele que há vários anos integra a comissão regional.

O Ministro das Obras Públicas, Transportes e Habitação substitui dois representantes, o do seu ministério e o do INAC.

O Secretário de Estado do Turismo, recentemente empossado e com acrescidas responsabilidades na matéria, encerra as substituições governamentais.

O carácter censurável de tal expediente acentua-se em razão de um concreto comando jurídico. Em sede estatutária, a RTA estabelece requisitos adicionais - isto é, para além dos estabelecidos na disciplina comum das regiões de turismo - no que respeita aos vogais da comissão regional. Os vogais dos organismos oficiais, expressão ampla que abrange as alíneas b) a h) e l) do nº 1 do artº 8º dos Estatutos, deverão ser designados de entre as pessoas ligadas por qualquer tipo de vínculo jurídico à entidade pública, exerçam as suas funções na Região. Pretende-se que a designação recaia sobre as pessoas que conhecem melhor a realidade regional pelo facto de lá desempenharem habitualmente as suas funções de natureza pública. Tal princípio, que vigora ab initio para as entidades públicas, foi posteriormente alargado às entidades privadas, as quais, a partir do Decreto-Lei nº 382/98, de 27 de Novembro, devem designar os seus representantes de entre as pessoas que desenvolvem a sua actividade na Região.

Sucede que os mencionados representantes ad hoc, isto é aqueles cuja intervenção foi justificada pelo alegado impedimento temporário dos representantes nomeados, não preenchem tal condicionalismo estatutário. O representante da tutela sobre os transportes exerce funções públicas não naquele sector mas no Hospital de Faro. O turismo, por seu turno, nomeou como representante a administradora de uma empresa privada que desenvolve uma actividade não turística.

Em suma, o Governo não resistiu a imiscuir-se na eleição para a comissão executiva da RTA, intervindo activamente e de uma forma assaz censurável. Era-lhe exigível uma postura de Estado, equidistante, respeitando uma eleição de grande importância em sede de administração regional do turismo, com projecção na liderança da associação das regiões de turismo, mas não conseguiu resistir ao apelo político-partidário.

Por um voto se ganha e por um voto se perde. Todavia, o estigma de uma vitória tangencial lograda à custa de uma anormal e ilegal ingerência do Governo fica associada a Helder Martins e constituirá decerto um pesado fardo. Em Ditadura ou nos estádios primários da Democracia atenta-se exclusivamente na expressão quantitativa da vitória eleitoral. Nos estádios mais avançados da vida democrática não se prescinde da legitimação ética do resultado eleitoral. A grande dignidade de Paulo Neves na derrota contrasta, assim, com os descritos expedientes eleitorais duplamente censuráveis do ponto de vista ético e legal. Atingem globalmente a imagem do Governo, não deixando de se projectar no novo responsável político do turismo. Um mau começo para o novo Secretário de Estado do Turismo, Luís Correia da Silva, que, não obstante o seu profundo conhecimento do sector e de oportunamente alertado para o enfoque estatutário, persistiu na ilegal substituição do seu representante. Ao invés, o Ministro da Cultura, confrontado pela violação estatutária preferiu a revogação do despacho, não sacrificando a legalidade às contingências da disputa política.

Carlos Torres
Advogado
Turisver, Ano XVIII – nº 592 – 20 de Maio de 2003