quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Da Inutilidade e sobretudo da Inconveniência de substituir o Decreto-Lei nº 167/97


O Decreto-Lei nº 167/97 constitui a disciplina base dos empreendimentos turísticos, fixando as linhas gerais de enquadramento, não se detectando nesse corpo de normas quaisquer factores que induzam à morosidade do licenciamento.
O licenciamento da construção e da utilização cometido às câmaras municipais é, no essencial, disciplinado no RJUE, salvo as particularidades decorrentes da legislação turística.
Em matéria de consultas a entidades exteriores ao município há que atentar nas potencialidades do artº 19º RJUE.
Os aspectos de maior pormenorização e desenvolvimento, tais como grupos e categorias dos empreendimentos turísticos, requisitos das instalações, classificação e funcionamento, são operados ao nível dos quatro decretos regulamentares que desenvolvem o Decreto-Lei nº 167/97.
Devemos, pois, focalizar a atenção nos decretos-regulamentares, indagando quais os aspectos concretos ao nível dos requisitos mínimos, classificação e funcionamento que possam e devam ser alterados.

Este é o quarto de uma série de artigos publicados neste jornal sobre o Plano de Desenvolvimento do Sector do Turismo (PDT). Procurarei neste escrito veicular a ideia de que a celeridade dos licenciamentos não se alcançará com a substituição do Decreto-Lei nº 167/97 por outro diploma, devendo antes focalizar-se a atenção nos decretos-regulamentares. Indagando quais os aspectos concretos ao nível dos requisitos mínimos, classificação e funcionamento que possam e devam ser alterados.

A forma como foi divulgado o PDT criou nalguns grupos expectativas verdadeiramente desproporcionadas. No entanto, como facilmente se intui, a nossa legislação turística não pode deixar de consagrar requisitos mínimos, alguns deles necessariamente exigentes, sob pena de comprometermos o futuro de uma das actividades mais promissoras do país. Esse grau de exigência mínimo que o turismo de qualidade necessariamente pressupõe nada tem a ver com a morosidade dos procedimentos de licenciamento (atribuível, em boa parte, a aspectos organizacionais da administração, como tentarei demonstrar num dos próximos artigos). Bem andou o Secretário de Estado do Turismo, com intervenções de pendor realista como as reproduzidas no nº 594 deste jornal, relativamente à necessidade de se cumprirem questões fundamentais como a «paisagem, urbanismo, higiene e serviço». Adequando e racionalizando, como não poderia deixar de ser, as expectativas criadas.

1) Forma como se organiza a disciplina legal dos Empreendimentos Turísticos: um diploma base e quatro decretos-regulamentares em correspondência com a tipologia

O regime jurídico dos empreendimentos turísticos figura actualmente no Decreto-Lei nº 167/97, de 4 de Julho (LET), o qual sucedeu à lei hoteleira que vigorou de 1986 a 1997.

A LET, embora constitua a disciplina base dos empreendimentos turísticos, não é exaustiva, sendo complementada por quatro regulamentos – um por cada tipo de empreendimento (artº 1º, nº 2) – que a pormenorizam e desenvolvem:

– estabelecimentos hoteleiros [Decreto-Regulamentar (DReg.) nº 36/97, de 25.9];
– meios complementares de alojamento turístico (DReg. nº 34/97, de 17.9);
– parques de campismo públicos (DReg. nº 33/97, de 17.9);
– conjuntos turísticos (DReg nº 20/99, de 13.9).

Até às alterações legislativas de 2002, a cada um dos quatro tipos de empreendimento turístico correspondia um decreto-regulamentar. A muito questionável criação do quinto tipo – parques de campismo privativos – motivou a alteração do DReg. nº 33/97, que estendeu a disciplina dos parques de campismo públicos aos privativos. Uma pequena nota antecipando um futuro artigo sobre este problema: para corrigi-lo bastará retomar a tipologia originária da LET, não havendo obviamente necessidade de substituir o diploma.

O primeiro e o segundo tipo comportam, em sede regulamentar, desdobramento em grupos ou subtipos. Assim, os estabelecimentos hoteleiros desdobram-se nos seguintes grupos: a) hotéis; b) hotéis-apartamentos (aparthotéis); c) pensões; d) estalagens; e) motéis; f) pousadas (artº 2º DReg. nº 36/97).

Por seu turno, os meios complementares de alojamento repartem-se por três sub-tipos: a) aldeamentos turísticos; b) apartamentos turísticos; c) moradias turísticas (artº 1º do DReg. nº 34/97).

2) Os requisitos das instalações bem como as regras sobre classificação e funcionamento surgem nos decretos-regulamentares

A regulação de aspectos de maior pormenorização e desenvolvimento, tais como grupos e categorias dos empreendimentos turísticos, requisitos das instalações, classificação e funcionamento, é operada ao nível dos referidos quatro decretos regulamentares e não no plano da LET (artº 1º, nº 3).

Daí os frequentes alertas e reparos que eram feitos ao anterior executivo, nos quais enfileiraram responsáveis políticos da actual maioria, de que o que verdadeiramente interessa aos agentes económicos e à vida das empresas são os aspectos práticos ou de substância, e não os meramente formais. Pelo que as modificações legislativas deveriam incidir nos decretos regulamentares que fixam os requisitos mínimos dos estabelecimentos e não na LET, que procede aos grandes e indispensáveis enquadramentos gerais, fazendo-o, aliás, de uma forma equilibrada e consensual.

3) Panorâmica geral da LET. Licenciamento da construção e da utilização

A LET aponta o serviço característico dos empreendimentos turísticos, o qual consiste, a título principal, no fornecimento de alojamento com carácter temporário (artº 1º, nº 1). Admite-se que possam acessoriamente prestar dois outros tipos de serviços: restauração e animação.

Para além da enunciação e caracterização dos diferentes tipos de empreendimentos turísticos (arts 1º a 6º), a LET enumera as competências da DGT e das câmaras municipais (arts 7º e 8º), seguindo-se dois aspectos de grande importância: a instalação (Cap. III - arts 9º a 40º) e a exploração e funcionamento (Cap. IV - arts 41º a 54º) dos empreendimentos turísticos.

A instalação engloba duas fases: em primeiro lugar, o licenciamento da construção (arts 15º a 24º), subsequentemente o licenciamento da utilização (arts 25º a 33º).

4) O papel do RJUE e das câmaras municipais

Neste ponto surgem-nos duas questões fundamentais: qual a disciplina legal e a que entidade compete o licenciamento da instalação de empreendimentos turísticos?

Aplica-se predominantemente o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), salvo algumas particularidades de regime constantes da LET, sendo o licenciamento cometido às câmaras municipais (artº 10º, nº 1). Ou seja, tal como em qualquer outro licenciamento da construção e da utilização, é aplicável o RJUE, exceptuando-se algumas especialidades decorrentes da legislação turística que têm de ser observadas.

5) Aplicação predominante do RJUE com observância das particularidades de regime decorrentes da LET

Passemos em breve revista as particularidades ou especificidades de regime mais significativas com vista ao licenciamento da construção e utilização de empreendimentos turísticos.

Desde logo, a câmara municipal tem de consultar a DGT no âmbito de um pedido de informação prévia (o parecer versa três aspectos: adequação ao uso pretendido, observância da LET e seus regulamentos e localização) e no licenciamento da construção (parecer vinculativo sobre o projecto de arquitectura mais os três aspectos anteriormente referidos). A DGT autoriza ainda as obras no interior dos empreendimentos quando dispensadas de licenciamento, realiza a vistoria com vista à classificação definitiva e aprova o respectivo nome (exceptuando os parques de campismo).

Uma pequena nota quanto à matéria da localização. O artº 39º RJUE dispensa a autorização prévia de localização que a lei em geral exija por parte de órgãos da administração central, na condição de as obras se situarem em área que esteja expressamente afecta ao uso proposto de harmonia com plano de urbanização, plano de pormenor ou licença ou autorização de loteamento em vigor.

Para além da DGT, a câmara municipal tem de consultar outras entidades. É o caso da direcção regional do ambiente e do ordenamento do território (arts 14º e 19º), do Serviço Nacional de Bombeiros (artº 22º) e das autoridades de saúde (artº 20º).

A garantística solução do deferimento tácito surge frequentemente na LET, não se vislumbrando outras situações nas quais devesse ser implementada.

6) Consulta de entidades exteriores ao município

O artº 19º RJUE disciplina a matéria das consultas a entidades exteriores ao município, a qual tem sido apresentada como um dos principais entraves ao licenciamento.

Existe, no entanto, um expedito mecanismo legal que pode potenciar a celeridade do licenciamento, através da prévia solicitação – isto é, em momento anterior à apresentação do requerimento inicial de licenciamento – pelo interessado dos pareceres, autorizações ou aprovações às entidades legalmente previstas. De duas uma: ou as entidades se pronunciam e os pareceres são juntos ao requerimento inicial (nº 2) ou, no seu silêncio, o interessado juntará no requerimento inicial os documentos comprovativos da consulta às entidades exteriores ao município plus a declaração do requerente da não emissão (nº 3). No primeiro caso, a validade da posição expressa pelas entidades consultadas fica apenas dependente de dois pressupostos, um de natureza temporal (que não haja decorrido mais de um ano sobre a tomada de posição) e outro da permanência da situação factual e jurídica que esteve na sua base (idem, nº 2).

A tomada de posição das entidades consultadas deve ser recebida pelo presidente da câmara municipal ou pelo requerente (no caso de prévia solicitação) no prazo de 30 dias (ibidem, nº 8) a contar da data da recepção do processo ou da recepção dos elementos adicionais (faculdade que a entidade exterior só pode usar uma vez, nos dez dias subsequentes à recepção do processo).

O nº 9 associa ao silêncio – rectius à não recepção dos pareceres, autorizações ou aprovações – das entidades exteriores ao município, no prazo acima referido, um regime favorável aos particulares: ipso iure passa a existir concordância daquelas entidades com a pretensão formulada. No mesmo sentido, o nº 6 do artº 15º LET estatui que a não emissão do parecer no prazo de 30 dias (a LET alargou para 30 o prazo de 20 dias fixado no RJUE) implica que se considere o mesmo como favorável.

A lei também prevê um mecanismo para obviar à inércia da câmara municipal na atempada promoção das consultas. No termo do prazo de 10 dias a que se aludiu supra, o interessado pode solicitar à câmara municipal a passagem de certidão da realização das consultas devidas, documento que deverá ser emitido no prazo de oito dias. Na eventualidade de a certidão ser negativa, o interessado tem duas possibilidades (nº 7). A primeira, promover directamente as consultas em falta (tal como na prévia solicitação) junto das entidades exteriores ao município. A segunda, de cariz judicial, pedindo ao tribunal administrativo que intime a câmara municipal a realizar tais consultas (intimação judicial para a prática de acto legalmente devido).

Não adianta, assim, nesta importante matéria modificar a LET, porquanto a sua conformação decorre do RJUE. Mesmo que consiga arquitectar um regime ainda mais favorável aos particulares, não parece razoável esperar que o Governo reacenda uma polémica com os municípios como a revisão do RJUE inevitavelmente acarretaria.

7) A sistematização da LET enforma a generalidade dos diplomas da legislação turística

O modelo normativo da LET, ou seja, a forma como se encontra sistematizada, inspirou fortemente a feitura de outras leis. É o caso da disciplina do turismo no espaço rural (Decreto-Lei nº 54/2002, de 11 de Março), turismo de natureza (Decreto-Lei nº 47/99, de 16 de Fevereiro) e estabelecimentos de restauração e bebidas (Decreto-Lei nº 168/97, de 4 de Julho).

Ora, essa grande afinidade sistemática entre diplomas facilita, no dia a dia, a aplicação das suas disposições, designadamente quando os grandes aplicadores são as câmaras municipais. A dificuldade sentida pelos serviços camarários no entendimento da legislação turística acentua-se, naturalmente, com a sua frequente modificação ou alterações de sistematização.

Carlos Torres
Advogado

Turisver
, Ano XIX – nº 602 – 5 de Novembro de 2003