sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

A ASAE e a Fiscalização da Legislação das Agências de Viagens

As alterações à Lei das Agências de Viagens constituem uma excelente ocasião para uma conjugação de esforços entre a APAVT e a ASAE da qual resulte um documento técnico que identifique com clareza e objectividade os pontos susceptíveis de fiscalização.

1) Excessos de um passado recente que cumpre aos tribunais corrigir nos casos em que o assunto lhes tenha sido submetido

Em pelo menos dois casos do meu conhecimento, uma alegada infracção consistente no facto de uma agência de viagens, nas vestes de agência vendedora ou retalhista, utilizar duas brochuras de destinos nacionais (respectivamente Madeira e Açores), elaboradas por um operador turístico nacional, «sem que do mesmo constasse o endereço e o número de alvará da agência vendedora» deu origem à aplicação de coimas montante de 4000 € e 5000 €, acrescidas das respectivas custas.

A fiscalização pela ASAE foi realizada há cerca de dois anos, estando na base da recente a deliberação da Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e de Publicidade, na qual tem assento o presidente da primeira entidade, encontrando-se os dois processos submetidos aos tribunais comuns por impulso da empresa sancionada, uma característica PME familiar.

Numa primeira fase, a agência de viagens defendeu-se alegando tratar-se de um lapso de um funcionário, sendo que as demais brochuras existentes nas suas instalações – milhares, por sinal – contendo programas de viagens organizadas (vulgarmente designadas por pacotes turísticos) continham um carimbo com a sua identificação no espaço para o efeito destinado pelo operador turístico.

Independentemente da imposição legal, existe um manifesto interesse comercial por parte da agência vendedora ou retalhista em figurar no programa, pois não dispondo desse contacto comercial aumenta a probabilidade de o consumidor adquirir o package holiday directamente ao operador ou a outra agência de viagens;

À luz do senso comum é patente o exagero das sanções aplicadas. Basta pensar que correspondem ao salário médio de vários meses de um funcionário.

2) A disciplina comunitária das viagens organizadas não prevê em sede pré contratual a divulgação na brochura do nome da agência vendedora

Em 13 de Junho de 1990, o Conselho adoptou a Directiva nº 90/314/CEE (in JO L158/59), relativa às viagens organizadas, férias organizadas e circuitos organizados.

A actual lei das agências de viagens – Decreto-Lei nº 209/97, de 13 de Agosto, abreviadamente LAVT – tal como a anterior (Decreto-Lei nº 198/93, de 27 de Maio) foi profundamente influenciada pela transposição da mencionada Directiva nº 90/314/CEE, como é, aliás, expressamente reconhecido nos respectivos preâmbulos.

O artº 20º, nº 1, da LAVT, determina que as agências de viagens que, por qualquer forma, anunciarem a realização de viagens organizadas deverão ter disponíveis os inerentes programas ou brochuras, os quais serão entregues gratuitamente a quem os solicitar.

O programa constitui um elemento indissociável do forfait turístico ou package holiday, sendo vulgar, aquando da preparação de uma viagem, o cliente consultar programas de diferentes operadores e destinos turísticos, acabando por eleger um deles, pelo que dificilmente se concebe actualmente a existência de viagens organizadas sem programas, dada a sua importantíssima função de captação de clientela.

O conteúdo mínimo dos programas de viagem consta do nº 2 do artº 20º da LAVT.

Em primeiro lugar, atenta a sua função de esclarecimento e de correcta preparação da vontade negocial, incluem a grande mole das menções que serão obrigatoriamente incluídas no contrato de viagem, mais precisamente as constantes das alíneas a) a l) do nº 1 do artº 22º.

Em segundo lugar, os programas constituem uma forma segura de se veicular o núcleo informativo imposto às agências em sede pré-contratual, no que concerne às exigências de passaportes e ou vistos bem como das formalidades sanitárias para a viagem e estada.

Por fim, as demais características especiais da viagem organizada devem, igualmente, figurar no programa ou brochura.

No entanto, na Directiva nº 90/314/CEE não impõe a existência do programa ou brochura, como se infere da expressão «caso seja colocada à disposição do consumidor uma brochura ...» (artº3º, nº 2).

Por outro lado, o nº 2 do artº 22º da LAVT, permite a substituição do contrato de viagem, mediante a simples entrega ao cliente do programa ou brochura e do documento de reserva, na condição de se ter verificado o pagamento, ainda que parcial. Trata-se de uma solução original do legislador português que visa agilizar a contratualística das viagens organizadas, maxime daquelas que são adquiridas com um hiato muito curto relativamente à data da partida, sendo que a solução não implica sacrifício das garantias do consumidor, porquanto, o programa contém, em regra, todos os elementos que figuram no contrato.

Na Directiva nº 90/314/CEE a menção ao nome e endereço da agência vendedora é imposta tão somente na fase contratual (alínea g) do Anexo), inexistindo tal exigência na fase pré contratual (cfr. artigos 3º e 4º);

A interpretação não se confina, em geral e também no caso vertente, a uma simples análise gramatical ou lógica dos textos das normas jurídicas da LAVT e da Directiva nº 90/314/CEE. É muito mais do que isso. Ultrapassa a mera exegese literal, perscrutando o conflito de interesses ínsito em cada norma, alinhando as várias soluções teoricamente possíveis desse conflito e indo à descoberta da razão pela qual a lei perfilhou aquela solução e não outra.

Compreende-se, assim, que o legislador português ao conceber a original solução de o programa poder substituir o contrato e, fazendo coincidir o conteúdo de ambos, terá antecipado para a fase pré contratual aspectos como o da identificação da agência vendedora que o direito comunitário só exige aquando da celebração do contrato.

Ora essa técnica jurídica que está na base da original solução do legislador português, visando diminuir a carga burocrática associada à celebração de contratos, com benefícios para agências de viagens e consumidores, não pode redundar em sanções de montante elevadíssimo para aquelas empresas, como as que se verificam nos dois casos em apreço.

Está em causa a razão de ser da lei, o que o legislador pretendia alcançar quando elaborou a norma. A ratio legis a que se refere o legislador no nº 3 do artº 9º do Código Civil, ao determinar que o «intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas».

Estamos, assim, perante uma situação de interpretação restritiva, em que o espírito da lei perscrutado com o auxílio dos elementos extraliterais aponta para um sentido mais amplo, mais abrangente do que o resultante da simples ponderação do elemento literal que parece exigir a indicação do nome, endereço e número de alvará, não apenas na fase contratual mas também em sede pré contratual.

Se na interpretação extensiva o legislador disse menos do que queria (minus dixit quam voluit), no domínio da interpretação restritiva temos a situação inversa, ou seja, o legislador disse mais do que o que queria ou podia dizer de harmonia com a disciplina da Directiva nº 90/314/CEE que adaptou ao direito português (maius dixit quam voluit). O sentido literal fica aquém do sentido real.

3) O futuro e a indispensável colaboração entre a APAVT e a ASAE

As alterações à lei das agências de viagens, acabadas de publicar, constituem uma excelente ocasião para um trabalho conjunto entre a sua representativa associação empresarial e a ASAE, dando a conhecer o refrescado quadro normativo e identificando aqueles que têm sido os pontos mais críticos apurados em sede de fiscalização.

É de toda a utilidade, atento o muito interessante precedente das fichas técnicas de fiscalização elaboradas conjuntamente pela associação empresarial da restauração (ARESP) e a ASAE, que desse trabalho resulte um documento que enumere exaustivamente, numa linguagem clara e acessível, os pontos susceptíveis de fiscalização no âmbito da legislação das agências de viagens.

A disponibilidade dessa listagem, permitindo ao empresário verificar periodicamente o cumprimento das suas obrigações legais, comporta inegáveis vantagens para todos os intervenientes. A lei é cumprida com um maior grau de efectividade e evitam-se surpresas aquando das acções de fiscalização.

Carlos Torres
Advogado
Artigo publicado em VIAJAR
(nº 213 – 2ª Quinzena de Julho de 2007)