sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

A nova Legislação do Turismo de Moçambique - Parte I


A aposta de Moçambique no turismo motivou a publicação, em 2004, de um novo enquadramento jurídico do sector, desenvolvendo-se actualmente a fase da sua regulamentação.

Uma nota positiva para o forte empenhamento de Portugal no concurso internacional que despertou o interesse do Brasil e de grandes consultoras internacionais, apresentando o nosso país equipas pluridisciplinares em que pontificam antigos governantes e altos dirigentes do turismo.

Para além do Congresso da APAVT, que terá lugar já em Novembro, também esta próxima colaboração entre os dois povos ao nível da construção de edifício normativo do turismo, poderá contribuir para o fortalecimento dos laços plurisseculares que os unem.

Vejamos, pois, os traços gerais da Lei nº 4/2004, de 17 de Junho, que aprova a Lei do Turismo (publicada no Boletim da República, I Série nº 24).

1) Legislação revogada

A legislação revogada constava do Decreto-Lei nº 49399, de 24 de Novembro de 1969, relativo à actividade da indústria hoteleira e dos estabelecimentos similares.

Este diploma, publicado antes da independência, estendido a Moçambique pela Portaria nº 218/74, de 23 de Março, teve, assim, uma prolongada vigência de três decénios.

O instituto nuclear da declaração de interesse para o turismo aplicava-se aos estabelecimentos hoteleiros e similares, operando uma clivagem entre os que reuniam os requisitos mínimos e podiam qualificar-se de interesse para o turismo e os que, pela sua falta, não mereciam tal qualificação.

A tipologia dos estabelecimentos hoteleiros que reuniam interesse para o turismo era a seguinte:

Grupo 1 – Hotéis (uma a cinco estrelas)
Grupo 2 – Pensões (uma a quatro estrelas)
Grupo 3 – Pousadas
Grupo 4 – Estalagens (quatro e cinco estrelas)
Grupo 5 – Motéis (duas a três estrelas)
Grupo 6 – Hotéis-apartamentos (duas a quatro estrelas)

Quanto aos estabelecimentos similares dos hoteleiros declarados de interesse para o turismo, distribuíam-se por três grupos:

Grupo 1 Restaurantes
Grupo 2 – Estabelecimentos de bebidas
Grupo 3 – Salas de dança

Para além de normas relativas à instalação dos estabelecimentos com interesse para o turismo, vistoria e inspecção, preços e composição dos serviços, havia ainda que atentar nas disposições do Decreto nº 61/70, de 24 de Fevereiro de 1970, que aprovou o Regulamento da Indústria Hoteleira e Similar.

2) Normas legislativas e normas regulamentares. Grande latitude do poder regulamentar cometido ao Executivo

A Lei do Turismo foi aprovada em sede parlamentar, mas a sua regulamentação cabe a outro órgão de natureza executiva, ou seja, discutida e aprovada na Assembleia da República o seu desenvolvimento e concretização através de normas complementares e instrumentais compete ao Conselho de Ministros.

O poder regulamentar é um poder subordinado ao poder legislativo. Entre lei e regulamento estabelece-se uma hierarquia na qual a primeira ocupa uma posição sobranceira, subordinando-se o segundo à primeira.

Daí que o regulamento só possa pormenorizar ou desenvolver a lei e não opor-se ou com ela conflituar sob pena de nulidade. Pode, no entanto, disciplinar matérias não versadas pela lei.

A Constituição de Moçambique não fixa qualquer critério para definir a fronteira material entre o domínio legislativo e o domínio regulamentar. Por princípio, em cada área normativa deverá existir uma parte legislativa e uma parte regulamentar.

No entanto, essa proporção entre o poder legislativo e o regulamentar vai depender da lei, a qual pode ir, inclusivamente, ao ponto de consumir o regulamento, de esgotar todo o espaço normativo do regulamento. Mas, ao invés, também pode quedar-se pelo estabelecimento de linhas muito gerais, as traves mestras do edifício normativo e deixar um grande espaço ao legislador regulamentar.

Não existe em Moçambique, tal como sucede entre nós, uma reserva de regulamento.

No caso vertente, parece-nos existir uma considerável latitude em sede de regulamentação. As normas principais criadas pelo Parlamento balizam mas, como veremos, deixam uma considerável margem de liberdade e criação à futura actividade normativa do Executivo.

3) Organização da Lei do Turismo

No curto preâmbulo em que se dá nota das potencialidades turísticas de Moçambique, da necessidade do seu desenvolvimento no plano regional e internacional, transversalidade, efeitos sobre o emprego e a captação de divisas, remata-se com a necessidade de refrescamento e actualização dos instrumentos jurídicos que enformam a actividade.

A Lei do Turismo encontra-se organizada em nove capítulos, a saber:

I – Disposições gerais
II – Planificação da actividade turística
III – Formação e promoção do desenvolvimento do turismo
IV – Actividades turísticas
V – Direitos e deveres dos turistas e consumidores de produtos e serviços turísticos
VI – Normas de qualidade e fiscalização da actividade turística
VII – Penalidades e impugnação
VII – Infracções criminais no âmbito do turismo sexual infantil
IX – Disposições finais e transitórias

4) Disposições gerais da Lei do Turismo

O Capítulo I (arts 1º a 5º) versa as disposições gerais.

O artº 1º é refere-se às definições legais utilizadas no diploma, as quais se devem apoiar num glossário que se encontra no anexo ao diploma, fixando-se, assim, conceitos como animação turística, campismo, ecoturismo ou meios complementares de alojamento.

Quanto ao objecto da Lei do Turismo, o artº 2º desdobra-o em duas vertentes fundamentais: de um lado as medidas de fomento, do outro a disciplina do exercício das diferentes actividades turísticas.

As primeiras encontram-se previstas no artº 14º, preceito que permite a criação de incentivos especiais pelo Conselho de Ministros relativamente a investimentos em empreendimentos novos ou em benfeitorias nos existentes.

No contexto interpretativo do diploma, tais incentivos acrescerão naturalmente aos previstos na Lei de Investimentos (Lei nº 3/93, de 24 de Junho), no Regulamento da Lei de Investimentos (Decreto nº 14/93, de 21 de Julho) e nos artigos 25º a 28º do Código dos Benefícios Fiscais (Decreto nº 16/2002, de 27 de Junho).

Por actividade turística (v. glossário) entende-se uma actividade comercial que compreenda o fornecimento de:

– Alojamento
– Restauração
– Satisfação de qualquer outra necessidade dos viajantes (assinalando a lei uma tríplice finalidade para as pessoas que viajam: lazer, motivos profissionais ou de carácter turístico)

5) Notas de natureza política sobre a vitória de José Apolinário e a prestação governativa de Bernardo Trindade

José Apolinário, que teve a seu cargo a responsabilidade do turismo na anterior Legislatura e que vem dedicando ao sector uma crescente atenção, obteve a presidência da Câmara de Faro, o que terá certamente constituído a maior alegria nas hostes socialistas numa noite madrasta em venturas eleitorais.

Apesar da sua simplicidade contrastar com algumas exuberâncias políticas muito em voga, vem realizando um trabalho sério e profícuo em prol do sector e da causa pública. Em sede parlamentar recordo-me da quantidade, profundidade e actualidade das questões que suscitava aos anteriores Governos, sempre com um elevado grau de correcção e resistindo às tentações da baixa política (v.g. a sua atitude de grande contenção perante o caso, objectivamente censurável, da colocação de Madalena Torres na Caixa Geral de Depósitos, o qual foi corajosamente amplificado no sector através de um editorial deste jornal).

Não tendo sido designado para a pasta do turismo no actual Governo, como seria de elementar justiça face ao positivo trabalho realizado na oposição, não deu mostras de qualquer ressentimento, tendo, ao invés, mantido uma atitude de solidariedade com o actual titular.

Por vezes a Democracia premeia estes Homens! Embora o faça, paradoxalmente, numa noite em que guindou a expressivas vitórias outros que se encontram a braços com a Justiça.

Uma breve nota quanto ao actual Secretário de Estado do Turismo que, do meu ponto de vista, vem revelando apagamento político e semeando alguma desilusão entre os seus correligionários. Isto quanto à vertente partidária, sendo que na vertente do relacionamento com o mundo empresarial e demais sociedade civil, embora não exista grande entusiasmo em torno da sua acção governativa – não é propriamente um político empolgante, galvanizador – também não gera contestações.

Tal tranquilidade é em boa medida explicável pela circunstância de o poderoso lóbi do imobiliário manter, no essencial, a influência que dispunha nos tempos de Correia da Silva e Telmo Correia, não tendo, por isso, de se queixar e não levantará grandes ondas enquanto se mantiverem os apetecíveis fluxos financeiros da betonização turística. Aliás, os que viam em José Sócrates o anti-Cristo do turismo, em razão do seu forte cunho ambientalista e auguravam o pior para o futuro da actividade com a sua ascensão ao poder, entreolham-se agora extasiados e esfregam as mãos de contentamento pela sorte que lhes coube ao manterem incólumes os seus centros de influência.

Embora a escolha tenha constituído uma surpresa, a sua ligação ao importante destino da Madeira, o parentesco a um prestigiado hoteleiro e destacado socialista várias vezes falado para o exercício do cargo, e, sobretudo, as funções políticas que exercia ao nível regional, num clima em que todos sabemos é difícil para os opositores, seriam à partida aspectos potenciadores de um bom desempenho das funções de Secretário de Estado do Turismo.

Poderá, inclusivamente, a escolha ter subjacente a necessidade de fazer rodar politicamente um dos candidatos a líder regional. Ainda jovem e dotado de uma boa imagem (cada vez mais importante para o marketing político), aproximando-se o fim político de Jardim, vem para o continente, realiza obra de monta no turismo, criando, entretanto, a indispensável experiência e solidez governativa num plano macro-político, de molde a poder tornar-se o futuro Carlos César da Madeira.

Tarda, no entanto, a sua descolagem política. Admito que o apagamento de Bernardo Trindade possa, eventualmente, imputar-se a algum condicionamento por parte do Ministro da Economia, que estoicamente carrega em silêncio, como já sucedeu no passado com alguns colegas secretários de Estado. Penso, no entanto, que o governante se encontra no ocaso do seu estado de graça e entra perigosamente no campo da letargia política.

Carlos Torres
Advogado
Artigo publicado em TURISVER
(Ano XX – nº 645 – 20 de Outubro de 2005)